segunda-feira, 14 de março de 2016

Leituras

Em algumas reportagens fui uma espécie de barriga de aluguer do meus saudoso camarada de Redacção Manuel António Pina, a quem devo a sugestão de vários trabalhos que ele entendia serem mais adequados às minhas características de repórter.
Recordo, a propósito, uma reportagem sobre julgamentos "encenados" nos Tribunais da Relação e no Supremo Tribunal de Justiça, quais "farsas" em que os acórdãos já estariam "pré-cozinhados", mesmo antes da respectiva audiência.
Licenciado em Direito, com amigos nas magistraturas, o Pina, assim era tratado entre nós, reunia muito melhores condições para fazer essa reportagem, tanto mais que as suas fontes estavam muito bem colocadas.
Mas o problema residia exatamente nas fontes. Atendendo ao extraordinário melindre da matéria e, ainda, às funções que desempenhavam, nenhuma das fontes do Pina queira ser identificada e, por mais que o seu anonimato fosse preservado, ele pensava que amigos seus seriam conotados como suas gargantas fundas. Procurando evitar comprometedoras suspeitas, este meu camarada ofereceu-me a reportagem. Mas não  se ficou por aí. Confiou-me as suas próprias fontes, que também confiaram totalmente em mim, crédito esse facilitado, segundo me disseram, por conhecerem o meu trabalho.
Em manchete, na edição do JN de 5 de Novembro de 1966, podia ler-se: "JULGAMENTOS ´ENCENADOS`NO SUPREMO E NA RELAÇÃO!".
No dia 23 de Outubro de 1996, uma quarta-feira, dia da semana em que se realizavam as audiências dos julgamentos em recurso penal no Tribunal da Relação do Porto (TRP), foram concluídos 19 em cerca de 75 minutos. Na quarta-feira seguinte, realizaram-se 18: nove, de manhã, e outros tantos de tarde. Pelo meu relógio, estas últimas demoraram, em média, menos de quatro minutos...
Importa ainda referir que esse tempo foi quase todo gasto pelos desembargadores-relatores na exposição da questão em apreço e objecto de recurso. Era dada então a palavra ao Ministério Público (MP), cujos procuradores intervenientes no processo davam como reproduzidos os seus pareceres escritos e já constantes dos autos. Eles limitavam-se, então, a pedir "justiça".
A parte seguinte destinava-se às alegações dos advogados que, em princípio, primavam pela ausência. Numa dessas sessões, dos 17 advogados com procuração apenas três responderam à chamada; e, noutra, dos 12 notificados não compareceu nenhum.
Quando a funcionária judicial informava o tribunal de que o advogado do arguido não estava, o desembargador-presidente dirigia-se a um dos advogados estagiários, que faziam fila na sala, e perguntava: "Não se importa de defender o arguido?" Obviamente que não; eles estavam lá precisamente para isso.
O defensor oficioso fazia uma vénia aos magistrados, que "muito respeitosamente" cumprimentava, para, logo de seguida, também pedir "justiça". Apenas isso.
Por tal cumprimento e pedido, os arguidos ou os cofres do Ministério da Justiça, consoante os casos, teriam de pagar ao defensor oficioso um montante variável entre os cinco e os sete mil escudos.
Mas, pelo que vi e ouvi, nessas duas quartas-feiras, nenhum advogado que esteve presente foi mais brilhante; nenhum deles pareceu acreditar que as suas alegações valessem para alguma coisa.
O tom de voz de alguns desembargadores convidava à sonolência. Ninguém, a não ser os magistrados mais próximos de si, os ouvia. Isso mesmo confirmou uma dessas estagiárias nomeada defensora oficiosa, que reconheceu "não ter" ouvido "nada" do que disse o relator do processo. Mas nada ter percebido do que falara o relator do processo não aqueceu nem arrefeceu. Ela pediu; à mesma, "justiça", pois era para isso que era paga.
Cumprido o ritual da sessão, começava outra. E assim sucessivamente. Chegada a hora do almoço, o desembargador interrompia os trabalhos, anunciando que prosseguiriam por volta da 16 horas, altura em que seria depositada na secretaria o acórdão.
Da parte da tarde, a história repetia-se. Apenas era alterada a hora da entrega dos acórdãos, que estariam disponíveis às 16h30.

(Pags. 323/325)