Em certos lugares da zona americana
uma distracção muito procurada consiste em assistir a um Spruchkammersitzung,
quer dizer, aos debates do tribunal de desnazificação. Um dos frequentadores
destes sítios é um homem com sandes embrulhadas num papel ruidoso, o qual, dando
mostras dum interesse nunca esmorecido, vê desenrolarem-se-lhe diante dos
olhos, raramente cansados, processos uns a seguir aos outros; conhece as salas
de audiência nuas destes palácios da justiça, meio destruídos pelas bombas,
onde já não há o menor vestígio da sádica elegância com que a justiça
habitualmente gosta de se ver rodeada. Seria errado pensar que ele se desloca
ao tribunal com as sandes para ali usufruir do tardio triunfo da justiça final.
É mais verosímil que se trate dum amador de teatro, que vem para aqui para
satisfazer a sua necessidade de arte cénica. Nas melhores ocasiões, isto é,
quando todos os participantes são suficientemente interessantes, um Spruchkammersitzung
constitui um drama cativante e de qualidade, alternando rapidamente entre o
passado e o presente, drama este que, por via dos intermináveis interrogatórios
das testemunhas, durante os quais nem um só dos actos dos réus, no decurso dos
doze anos considerados, é tido de somenos importância para ser silenciado, tem
o efeito de exercícios práticos de existencialismo. A atmosfera de
sonho e de irrealidade, em que se desenrola esta inspecção de pormenores provindos
das recordações lamentáveis ou medonhas duma nação inteira, suscita uma outra
associação de ideias de carácter literário. Nestas salas de sessão situadas no
topo de edifícios com tecto de clarabóia, as quais, com as janelas meio
muradas, as paredes absolutamente nuas, as suas frias lâmpadas incandescentes e
o seu pobre mobiliário danificado pelas bombas, criam o efeito duma
transposição para a realidade dos sótãos em cujos escritórios desertos se
desenrola O Processo, julgar-nos-íamos transportados para o mundo fantástico
de Kafka e do seu tribunal.
Do Capítulo OS TRÂMITES DA JUSTIÇA,
pags. 90/91