terça-feira, 22 de maio de 2018

Germano Almeida

Sou um leitor assíduo da obra de Germano Almeida, Prémio Camões de 2018. Advogado que é, tem sempre reflexões interessantes e irónicas sobre a justiça. Em 17 de maio de 2013, neste blogue, transcrevi um texto extraído do seu romance Os Dois Irmãos. Em modesta homenagem, volto a transcrevê-lo.

Nesse ponto da discussão, o meritíssimo disse que já agora talvez não fosse despropositado ele ouvir do ilustre colega a opinião que os advogados têm dos juízes, de facto era uma coisa que lhe despertava uma certa curiosidade. O advogado sorriu. É capaz de não ser bem uma opinião, para ser antes uma constatação. Os juízes têm demonstrado que a opinião que têm dos advogados em geral não é muito diferente da aqui manifestada pelo digno procurador. Acontece apenas que o juiz desempenha no processo um papel diferente, mas que muitas vezes não é senão o papel de um déspota, infelizmente nem sempre iluminado, porque limita-se a decidir que deve ser assim ou assado e, não poucas vezes, por incompetência ou simples desleixo, sem uma convincente fundamentação que obrigue ao respeito do advogado, mesmo estando ele em desacordo com a decisão. A maior parte dos advogados está de acordo em como os juízes procedem diante dos seus escritos como os professores das escolas primárias: Vamos ver onde este aluno está a falhar! Na maioria deformados pelo papel de decisores, em regra recusam aceitar que, como todos os mortais, também cometem erros, muitas vezes erros crassos e de palmatória, e isto revela-se mais confrangedoramente na sustentação das sentenças ou despachos recorridos. E depois vivem no constante medo atávico de se deixarem enganar pelos aldrabões dos advogados. Não pretendo, evidentemente, dizer que o colega proceda deste modo, o que estou a dizer é que a maior parte dos juízes que conheci e com quem trabalhei age desta forma. O juiz sorria desta análise e acabou por dizer que ela era tão apaixonada quanto a que o digno agente tinha acabado de fazer. Mas disse que estava na hora de reiniciarem os trabalhos se queriam mesmo almoçar descansados e chegar em casa ainda de dia.

quinta-feira, 17 de maio de 2018

Disparidades 5

New data from the New York State Division of Criminal Justice Services (NYS DCJS) highlights the racial disparities that continue to plague our criminal justice system, particularly in the case of marijuana possession. In 2014, New York City decided it would no longer arrest people for low-level marijuana possession. Despite this decision, the NYS DCJS data—which tracks New York Police Department (NYPD) arrest statistics for the first three months of 2018 and includes comparative data for January-March of 2016 and 2017—shows that many people, mainly black and Latino people, are still being arrested.
Ninety-three percent of the people arrested by the NYPD for marijuana possession in January-March of 2018 were New Yorkers of color. Of the 4,081 arrests for criminal possession of marijuana, only 287 of those arrested were white people, compared to 2,006 black people and 1,621 Latino people.

quarta-feira, 16 de maio de 2018

As claques

A expressão pública de grupos de extrema-direita tem vindo a concretizar-se, há anos, através do futebol, contaminando até já outras modalidades. As claques, pela sua índole funcional, são estruturas facilmente infiltradas e dominadas por conceções fascistas e nazis de organização. Da solidariedade cega à violência gratuita, os seus padrões de atuação são incompatíveis com os valores da tolerância democrática. Mais do que casos de polícia, tornaram-se um problema de segurança interna. É evidente que as claques não acabam por decreto. Por isso mesmo, os clubes têm o dever de não permitir que sejam o seu viveiro. 

domingo, 6 de maio de 2018

A eficácia da carta anónima


“Preso pela primeira vez em 1931, por denúncia feita por carta anónima enviada à Polícia Política, Leonildo da Assunção Felizardo esteve preso cerca de 16 anos consecutivos, apesar de ter sido condenado, depois de recurso, a 4 anos de degredo.
Permaneceu dois anos em Angra do Heroísmo, cerca de oito no Campo de Concentração do Tarrafal e três nas Cadeias Civis Centrais de Lisboa.”


terça-feira, 1 de maio de 2018

Eu sei

No DN, com o título Eu sei, o Professor José de Faria Costa, publicou um texto de leitura e reflexão obrigatórias. Para que a sua vida, a do texto, possa ser mais do que um ai, o meu modesto contributo é transcrevê-lo.

Eu sei. Sim, eu sei. E porque sei, não quero que o meu silêncio ecoe no infinito presente da minha vida para que não possa ser apodado, no futuro passado, de cúmplice.
Eu sei que muitas vezes não é fácil vir a terreiro defender aquilo que deve ser defendido como se defendêssemos as "muralhas da cidade". Mas há um tempo para tudo e não precisamos de recorrer ao Eclesiastes para justificar a bondade do que se acaba de dizer. Eu sei que o tempo mediático talvez já tenha passado para aquilo que brevemente irei escrever. E talvez, por isso mesmo, o queira agora dizer, porque as coisas só ganham sentido quando a poeira frenética da mediação informativa, levada pelo vento do tempo instantâneo, pula para um outro acontecimento, uma outra notícia, verdadeira ou falsa, pouco importa, para um outro dado da comunicação social (escrita, televisiva ou radiofónica).
Eu sei que a liberdade de expressão e os direitos a informar e a ser informado são esteios indestrutíveis de uma qualquer comunidade verdadeiramente democrática e que, por isso, qualquer forma de censura ou limitação desproporcionada, em meu juízo, são intoleráveis. Eu sei que há um ruído insuportável à roda de vários casos, chamados mediáticos, que uma solerte comunicação social considera serem protagonizados por "famosos, ricos e poderosos" e que se alimenta, de modo preciso, da qualificação que, justamente, faz desencadear as pulsões mais primárias dos membros de uma qualquer comunidade de homens e mulheres historicamente situados. Este é, em definitivo, um dado histórico indesmentível e que a mais séria psicossociologia do estudo das massas não deixa de confirmar.
Eu sei que muitos vão dizer, como já antes o disseram, que só desta forma se pode combater o crime, sobretudo a criminalidade altamente organizada e muito particularmente a sofisticada criminalidade económico-financeira e, para mais, continuarão a dizer que o esmagamento das garantias mais elementares dos cidadãos, mesmo que inocentes, nada tem de especial: é o preço a pagar para honrarmos a deusa "transparência", acompanhada da sua irmã "eficiência". E alguns, mais afoitos no seu radicalismo, até dirão que pensar o contrário mais não é do que a redundância de "luxos" que alguma intelligentsia liberal e talvez decadente gosta de defender. Tudo tem de ser transparente. Na vida individual. Na vida colectiva. Tudo pode e deve ser devassado. Sem limites. A intimidade pessoal, a vida privada individual, familiar ou social nada valem quando se quer perseguir os criminosos, quaisquer criminosos, mesmo que só putativos criminosos, esquecendo-se ou postergando-se, sem rebuço, a presunção de inocência até ao trânsito em julgado.
Eu sei que as coisas que têm acontecido nos últimos meses, para não dizer anos - e que se espelham na divulgação de factos sujeitos ao segredo de justiça ou, não o estando, na sua publicitação que é, do mesmo passo, criminalmente punível-, se tornaram, de forma patológica, endémicas no tecido jurídico-social português. Endemia ou pandemia que aparentemente preocupa toda a gente mas que, efectivamente, faz que "toda a gente" nada faça.
Eu sei que tocar ou mexer neste ponto é tocar ou mexer na estrutura político-normativa do próprio Estado, o que nos faz imediatamente duvidar de qualquer movimento de reforma em tempos que são dominados, ferreamente, pela ideologia e pela nomenclatura do pensamento económico-financeiro e que, ao menor suspiro de manifestação de vontade de mudança, de supetão nos é atirado o perverso, estúpido e diletante brocardo: "It"s the economy, stupid." Mas o problema é que este ar malsão que respiramos não vem só da economia. Vem de muito mais fundo. Vem de não se perceber que a administração da justiça em nome do povo - não a justa aplicação do direito ao caso concreto por um juiz e não por representante do Ministério Público - é sempre e definitivamente um problema político. Uma questão que se insere no grande mundo das políticas públicas de quem legisla e de quem governa. Neste sentido, dizer-se "à política o que é da política e à justiça o que é da justiça" é não só apoucar e definhar a máxima religiosa que lhe serve de parâmetro mas também, e talvez por sobre tudo, não querer assumir as obrigações políticas que órgãos, democraticamente eleitos, devem com orgulho, porque mandatados pelo voto, levar a cabo.
Eu sei que uma leitura apressada ou de má-fé dirá que o que vai aqui pressuposto é a tutela doutrinal de uma "justiça para ricos" e de uma "justiça para pobres". Em boa-fé direi que uma tal interpretação está nos antípodas do que sempre defendi, escrevendo e ensinando, há quase meio século. Por imperativo ético e democrático a lei é igual para todos e a todos por igual tem de ser aplicada, com rigor e imparcialidade. E direi mais: a corrupção é um mal, também ele endémico, que tem de ser combatido por todos os meios, incluindo o direito penal, na sua expressão mais firme e rigorosa. Por isso, infelizmente, Portugal vive duas endemias em que uma alimenta a outra, em um indissociável processo simbólico de reciprocidade.
Eu sei que a última metade do século passado foi a afirmação e tutela, em jeito que se queria universal, dos direitos humanos, em todas as suas dimensões e, por sobre tudo, de modo muito particular, quando lidávamos com as "cousas" dos direitos penal e processual penal. Porém, os primeiros anos desta centúria parecem levantar ventos securitários. E se, desde a Ilustração, se dizia que "mais vale ter à solta um culpado do que punir um inocente", parece que, hoje, o mais importante é punir a eito e se se não puder fazê-lo em tribunal que aconteça, então, na praça pública. Oh! Santa Idade Média, regozija-te, os teus lados mais negros estão perdoados. Para quê o "processo justo"? Para quê a presunção de inocência até trânsito em julgado? Para quê a proibição da inversão do ónus da prova em processo penal? Para quê o princípio da legalidade da norma incriminadora? Para quê mostrar a insanidade da delação premiada? Para quê salientar dogmaticamente o irrazoável do querer criminalizar o chamado "enriquecimento ilícito"?
Eu sei. Eu sei que o que escrevi pouco vale para mudar o que quer que seja, porque sei que uma crónica de jornal não tem sequer a vida de um ai e, outrossim, menos sequer a força política de um gesto de criança. Todavia, sei que é preciso: não navegar mas dizer.