quinta-feira, 31 de março de 2011

Escutas, por partes III

Apesar de uma regulamentação que se pretenderia exaustiva, conciliando o direito à intimidade com a eficácia da investigação criminal, a verdade é que se assiste à sua descredibilização como instrumento ao serviço de causas e não de acasos.
Mesmo quem tenha caído nelas, não por causa mas por acaso, não pode ter a certeza que depois da sua destruição jurídica elas não sobrevivam por aí, eternamente.

A guardar a suspensão

Uma das inquietações que atravessa a justiça portuguesa resume-se em poucas palavras.
Decretada a suspensão provisória do processo, em processo sumário, onde é que ele deve aguardar o período da suspensão? Na secretaria judicial ou na secretaria do Ministério Público?
Quando se perdem energias e desgastam bons sensos com questões como esta, de cariz estritamente corporativo, não há Códigos que resistam nem justiça que se prestigie.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Dilema

Ouvi José Rodrigues dos Santos, o nosso homem na Líbia, dizer que os bombardeamentos democráticos (o adjetivo é meu) são muito certeiros, não matam civis, e que o que Kadafi proclama sobre a existência de civis mortos é propaganda. Se forem tão certeiros os bombardeamentos democráticos como o foram no Iraque e o estão a ser no Afeganistão, em que hei-de acreditar? Em José Rodrigues dos Santos ou em Kadafi?

Doença infantil

Afinal não são apenas os jornalistas a "confundir os limites de valor para aprovação da despesa, com os aplicáveis à escolha do procedimento de ajuste directo". A revogação, pela Assembleia da República, do Decreto-Lei nº 40/2011, de 23 de Março, inscreve-se no mais sórdido dos populismos, essa doença infantil das democracias.

Leituras

Para quem se interessa por estas coisas da justiça, dos crimes e das penas, a revista do Crimino Corpus é de leitura obrigatória.

terça-feira, 29 de março de 2011

Cambalhotar

Verbo transitivo: Dar cambalhotas para iludir alguém.
Verbo intransitivo: Dar cambalhotas para não sair do mesmo sítio.

DNAs

Para quem queira aprofundar os conhecimentos neste âmbito, vale a pena consultar o sítio do National DNA Data Bank / Banque nationale de donnés genétiques, do Canadá, não perdendo a leitura dos relatórios elaborados anualmente.

ADNs

A Lei nº 5/2008, de 12 de Fevereiro, definiu a criação de uma base de dados de perfis de ADN para fins de identificação e de investigação criminal. Três anos passados, e depois de se terem anunciado tão elevadas expectativas, o que se pode concluir é que nem a identificação nem a investigação criminal ficaram melhor. Definir o interesse da recolha dos perfis em função da pena e não do crime, e deixar a sua concretização ao arbítrio de uma decisão judicial, foram opções fatais.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Perguntar não ofende

Como é possível acreditar em quem, antes de governar, já nos desgoverna?

sábado, 26 de março de 2011

Escutas, por partes II

1.As interceções telefónicas, face aos meios técnicos disponíveis, tornaram-se em devassas.
2.A vida do intercetado e dos outros, de todos os outros que sejam apanhados a conversar ou a desconversar com aquele, ficam absolutamente na disponibilidade do mundo.
3.Já não é a investigação que está em causa, mas a privacidade e a liberdade de dizer e de contar de cada um e de todos.
4.Aliando tudo isto aos baixos níveis éticos existentes, em cada dia mostrados e demonstrados, as escutas são um meio moderno de tortura psicológica.
5.Por essa razão escrevi alguma vez: das escutas de que tenho medo são das legais.
6.A que poderia acrescentar: e não dos seus fantasmas.

sexta-feira, 25 de março de 2011

Vidrinhos

É possível acreditar em políticos que amuam? Em vidrinhos políticos? Quando ia a caminho da aldeia, pela Antena 1, ouvi uns comentadores justificando a coligação negativa dos Senhores Deputados e a falta de margem de manobra do Senhor Presidente da República por causa do Sócrates. Do erro do Sócrates. Então não é que o homem não comunicou previamente o PEC outro ao líder do maior partido da oposição e ao Senhor Presidente, PEC com o qual até eles poderiam concordar, e que essa sua atitude feriu de morte qualquer solução que não fosse a queda do Governo? De facto, da coisa séria à brincadeira, a distância é curta.

Contradições

O Governo está em gestão; a Assembleia da República não.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Também os outros

A leviandade da votação de ontem tornou-se também um problema para os outros.

"Portugal’s political turmoil and its urgent need for a rescue will now loom large at an EU summit this week, which may put off a deal to expand the bail-out fund and fail to sign a new “pact for the euro”. If EU leaders have to bail out Portugal, they may find they have already used quite a big chunk of their fund. Judging by experience, the markets will swiftly move on to attack the Spanish. The bail-out fund can quite easily finance Portugal. It is not clear that it could deal with Spain."

The Economist

quarta-feira, 23 de março de 2011

4 a 1

Depois da votação de hoje na Assembleia da República ficámos a saber mais sobre a governação futura? Não.
Depois da votação de hoje na Assembleia da República ganhámos credibilidade internacional? Não.
Depois da votação de hoje na Assembleia da República melhoraram as condições para ultrapassar a crise? Não.
Depois da votação de hoje na Assembleia da República consolidou-se a identificação do País com o seu Presidente da República? Não.
Depois da votação de hoje na Assembleia da República aumentaram as probabilidades do Partido Socialista vencer as próximas eleições? Sim.

Margem de manobra

A margem de manobra é, essencialmente, subjetiva. Com um mesmo veículo, há quem a tenha e quem não a tenha. Depende do olho, do interesse, da sabedoria ou da experiência. O que não pensaríamos se nos aparecesse um magistrado do Ministério Público a dizer, não tenho margem de manobra para o acusar. Ou um juiz, não tenho margem de manobra para o absolver.

terça-feira, 22 de março de 2011

Petição

As minhas finanças são as domésticas; e as economias as minhas filhas. O que sei é que a sociedade precisa de políticas e de políticos, e que, em tempo de crise, precisa também de serenidade e de solidariedade. Nem as políticas nem os políticos são incompatíveis com uma ou com outra. É, por isso, que gostaria de dizer a cada um dos políticos, sobre cada uma das políticas, entendam-se. O país agradecerá.

Moralidade outra

Que um responsável da administração pública, designado pelo PS, aposte a sua sobrevivência no ainda maior número de amigos que possui no PSD, tem mais a ver com o equívoco da amizade do que com o logro da política.

segunda-feira, 21 de março de 2011

Dia Mundial da Poesia

"Falta futuro a quem tem no presente as ambições
Passadas.
"

Armando Silva Carvalho

Culpas, desculpas, prescrições

Um grupo de amigos, nos quais se incluem alguns magistrados do Ministério Público, a propósito do crime de corrupção e de outros similares, desculpam-se das incompetências culpando as prescrições. As prescrições, como todos os prazos, têm as costas largas. Uma justiça sem prazos seria a alegria desse grupo de amigos. E da comunicação social amiga dos amigos.

domingo, 20 de março de 2011

Frases que ficam

À minha avó sempre ouvi esta: a canalhada dá cabo de mim.

Acumulações

Acumular é uma tentação. É a tentação ordinária dos magistrados. Quando a legalidade colide com o pudor, seria este a prevalecer. Mas não é.

sábado, 19 de março de 2011

Trancas na Porta

Os serviços secretos sempre exerceram um grande fascínio sobre as pessoas, incluindo os políticos. Nomeadamente naquelas e naqueles que nunca leram “O Nosso Agente em Havana”, de Graham Greene. O cinema ajudou à festa, e serão poucos os que alguma vez não sonharam estar de posse dos mistérios deste mundo. Com alguma leviandade, volta-se a falar dos serviços secretos, da inteligência anglo-saxónica, como se o seu desempenho no passado fosse garantia de eficácia e de bom senso no futuro. No que diz respeito ao presente, estamos, tragicamente, falados.
Os serviços secretos são, hoje, cada vez mais, a voz do dono. Tornaram-se máquinas pesadíssimas, mais preocupadas em sustentar a sua sobrevivência do que em prevenir a nossa segurança. Por isso mesmo, a sua vocação atávica é a de produzirem dados e perspectivas, ainda que delirantes, que sabem ir agradar a quem lhes paga: o governo. Aliás, é o que se passa com o comum dos mortais. A bruxa que se respeita é aquela que nos diz aquilo que queremos ouvir.
Desde a queda do muro de Berlim à invasão do Iraque, os serviços secretos ou chegaram tarde ou subsidiaram mentiras. Até no caso da Roménia, foram apanhados de surpresa.
Em Portugal, os serviços secretos são o que são: portugueses. E, como tal, secretamente dependentes da informação alheia. Eu gostava de conhecer os relatórios dos espiões que analisam a informação divulgada pela TVI ou que perspectivam a análise do comentador José Fernandes. Da realidade à ficção, a distância deve ser curta. Às vezes, mesmo inexistente.
A União Europeia anda preocupada com o desempenho dos serviços secretos dos seus membros. O nosso comissário em Bruxelas afadiga-se na procura de soluções. O Diário de Notícias de ontem, escrevia, em letras gordas, na primeira página, que a cultura de secretismo dificulta cooperação. Mas o que se espera de uns serviços secretos senão secretismo?
Não conheço nenhum espião nem frequentei o curso de defesa nacional. De tácticas, conheço as do treinador Mourinho, e, de estratégias, as do Professor Marcelo. A moral que quero tirar de tudo isto é a de que, tal como na actividade política, também em matéria de segredos, depois da casa roubada, trancas na porta. Ou seja, mais segredos ainda.

Este texto foi publicado em Os Cordoeiros, em 19 de Março de 2004

Foi recuperado no Renascer!... pelo António Maria

Ainda que datado, creio que mantém alguma atualidade

Escutas, por partes I

1.O Ministério Público, em cada ano, sabe (tem obrigação de saber) o número de interceções telefónicas que se realizaram ou estão em realização. Ou em cada mês. Ou em cada semana.
2.O Ministério Público sabe (tem obrigação de saber) a duração média de cada interceção.
3.O Ministério Público sabe (tem obrigação de saber) em que tipos de crime foram utilizadas as interceções.
4.O Ministério Público sabe (tem obrigação de saber) em quantos inquéritos as interceções foram um meio de obtenção de prova relevante ou em quantos o não foram.
5.O Ministério Público sabe (tem obrigação de saber) relativamente a quantas interceções foram suscitadas ilegalidades que levaram à sua anulação como meio de obtenção de prova.
6.O Ministério Público se não o sabe é por que entende que não será importante sabê-lo, ou não tem tempo para o saber.

quarta-feira, 16 de março de 2011

O nó cego da Justiça

Ouvidos os discursos, o que nos fica? Uma perplexidade maior. Transformar a abertura solene de um ano judicial numa troca trivial de recados não credibiliza nem estimula.

O caldeirão

Já há normas incriminadoras, em que não havendo algum equilíbrio na sua interpretação, permitem que lá caiba o mundo quase todo. Uma delas é a que incrimina o tráfico de influências. A ser criminalizado o enriquecimento ilícito, então teríamos um caldeirão onde caberiam este mundo e o outro.

Atrasos

Setenta e cinco dias depois, concelebra-se, hoje, a abertura do ano judicial. É apenas mais um atraso nos muitos em que a justiça é pródiga.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Erro judiciário 6

"In detective novels and television crime dramas like "CSI," the nation's morgues are staffed by highly trained medical professionals equipped with the most sophisticated tools of 21st-century science. Operating at the nexus of medicine and criminal justice, these death detectives thoroughly investigate each and every suspicious fatality.
The reality, though, is far different. In a joint reporting effort, ProPublica, PBS "Frontline" and NPR spent a year looking at the nation's 2,300 coroner and medical examiner offices and found a deeply dysfunctional system that quite literally buries its mistakes.
Blunders by doctors in America's morgues have put innocent people in prison cells, allowed the guilty to go free, and left some cases so muddled that prosecutors could do nothing
."

ProPublica

Denúncia anónima 2

A Procuradoria-Geral da República escancarou as portas à denúncia anónima. Na minha modesta opinião, nem a lei o consente nem a ética o aconselha. Fomentar o anonimato e criar com o “anónimo” uma relação de intimidade processual, é um propósito que corre à revelia da civilização. Quem tenha lido um pouco da história da justiça, sabe bem que o anonimato sempre foi uma arma de inquisições e de totalitarismos, prestando-se a todas as arbitrariedades judiciais. A eficácia tem os limites da integridade dos procedimentos. É um preço alto, com certeza. Mas não poderia ser outro senão o preço da nossa própria humanidade.

domingo, 13 de março de 2011

A romaria

Somos um país em que as romarias sempre foram promovidas com eficácia.

Desconfiança legítima

"Na sua simplicidade este episódio mostra uma das mais perversas características da justiça portuguesa, ou seja, a escandalosa promiscuidade entre a investigação criminal e os órgãos de comunicação social. Um cidadão apresenta queixa por factos que indiciam a existência de um crime, os investigadores abrem um inquérito e a seguir arquivam-no sem que ninguém (na PJ ou no MP) lhe preste os esclarecimentos e as explicações a que ele tinha direito. Quem acaba por fazê-lo é um jornalista num momento em que o processo ainda estava em segredo de justiça e mesmo antes de o queixoso ser notificado do despacho de arquivamento.
Poderia ficar por aqui, pois, o caso já fala por si o suficiente. Mas não. É imperioso dizer que a justiça só cumprirá as suas finalidades constitucionais quando estiver entregue a magistrados e a polícias em quem se possa confiar. Não sei quem é o responsável pela omissão das explicações a que me julgava com direito nem pela preferência dada ao jornalista em detrimento de mim próprio. Sei apenas que, numa justiça que funciona assim, decididamente, não se pode confiar.
"

Marinho e Pinto, in JN

Comparações

"A análise comparativa dos discursos do Presidente da República e do Presidente da Assembleia da República, coloca em evidência a omissão de Aníbal Cavaco Silva, ao limitar a meia dúzia de linhas banais a referência à dimensão internacional e europeia na actual crise económica portuguesa."

Mário Mesquita, in JN

A natureza da lei

"Take the question of the nature of justice. We think of justice as an abstract standard that can be invoked in the criticism or evaluation of human actions and institutions. The content of justice is thought of as independent of all such actions and institutions: the fact that we punish criminals does not, in itself, show that it is just to punish criminals, for example. Nor can justice be regarded as simply a matter of conventional belief: the fact that people believe that it is just to punish criminals does not, in itself, make it just (someone who thinks otherwise has clearly failed to understand what justice is)."

N. E. Simmonds

German Law Journal

sábado, 12 de março de 2011

Factos, precisam-se

Juízes e procuradores não deveriam ser gente de crenças mas de factos. Quando leio que um juiz “acredita” ter sido escutado, ilegalmente, presumo, ou que um magistrado do Ministério Público insinua que há escutas ilegais, quod erat dmonstrandum, é a justiça que perde o pouco do que ainda tem para perder.

quarta-feira, 9 de março de 2011

Serenidade

Não sei adivinhar o que sejam os dias futuros do País. Mas não consigo evitar a inquietação que me suscita um discurso em que a serenidade não veio "para perto de mim e para nunca."

Do poema de Raul de Carvalho, Serenidade és minha

terça-feira, 8 de março de 2011

8 de Março

O número exponencial de inquéritos registados nos serviços do Ministério Público respeitantes a eventuais crimes de violência doméstica, traduzidos, na generalidade, em agressões a mulheres e crianças, é, hoje, uma epidemia social. Definir critérios uniformes de atuação, dentro dos princípios de política criminal existentes, exige uma diversificada concertação de meios. Não se pode continuar a assistir à anarquia dos procedimentos e dos propósitos.

Fábula

Vou de Condeixa ao Porto, numa tarde chuvosa, entre os 110/120 quilómetros por hora. Apesar da chuva e do preço dos combustíveis, não há ninguém que não me ultrapasse. Só consigo tirar duas conclusões: ou são burros, e pensam que vão poupar ganhando 10 ou 15 minutos na viagem; ou são ricos, e, para o efeito, tanto lhes faz. É por isto que é difícil governar em democracia, em tempo de crise.

Banalidades, desnecessidades, mediocridades

Há muito que não via um telejornal da tarde. Hoje, entre as 13 e as 14 horas e 10 minutos, liguei-me à RTP 1. As banalidades, as desnecessidades, as mediocridades, preencheram aquele tempo, obviamente condimentadas com insinuações descabidas sobre Sócrates. Que aquilo custe ao país verdadeiras fortunas, é o que não consigo compreender. Que aquilo exista, sustentado pelo Estado, num país em que a investigação e o desenvolvimento tecnológico são “um bom exemplo” europeu, é o que não se consegue justificar.

domingo, 6 de março de 2011

Uma decisão avisada

A decisão do Procurador-Geral da República em manter a utilização do sistema informático na área criminal foi a mais avisada. A verdade é que o sistema nunca pôs em causa a eficiência da investigação nem estimulou a violação do segredo de justiça. Pelo contrário, possibilitou, a quem o quis utilizar, os meios de gestão e de controlo até então inexistentes. Se se quer saber onde está a ineficiência da investigação ou a violação do segredo de justiça, ter-se-á de bater à porta da incompetência e da falta de ética.

sábado, 5 de março de 2011

Justiça, informática, demagogia

Uma auditoria detetou 21 falhas de segurança no sistema informático dos tribunais, é o que se publica em parangonas. No entanto, é preciso dizê-lo, não são essas falhas, obviamente corrigíveis, que provocam os atrasos nos processos, os incumprimentos nos horários, as desconfianças nos cidadãos. Sem o sistema informático existente, sem dúvidas, as falhas de segurança seriam mais e mais graves.

Horários

Sr. Cordoeiro-Mor

A minha mulher não sabe que eu ando metido nesta coisa dos blogues. Não sabe nem deve saber. É, por isso, que tenho de, sendo eu, parecer que o não sou.
Não será uma questão de fingimento ou de personalidade em duplicado: será mais uma questão de ilusionismo. Não é apenas no palco do circo que é preciso criar ilusões. Também no palco da vida, ainda que esta imagem, de tão gasta, já não iluda ninguém.
Sou eu que compro, para mim, os xanaxes necessários à minha sobrevivência. Mas é ela que os toma, à minha revelia. Nos primeiros tempos em que isso me aconteceu, ainda supus ser a empregada, suposição manifestamente injusta. Tirei a prova dos nove quando deixei, por intencional descuido, um quadrado de chocolate e um xanax sobre a mesa que sabia ir ser limpa naquela tarde. Só o chocolate desapareceu.
A minha mulher desconfia da justiça e de mim. Não sei se começou, primeiro, a desconfiar de mim, ou se foi da justiça. Lembro-me de que, uma vez, ficou muito escandalizada quando foi testemunha, meramente abonatória, de um colega, julgado por ter insultado a sogra. Convocada para estar no tribunal às 9h30m, danou-se quando soube que o juiz, que no caso era uma juíza, apenas chegou às 11h30m. Ainda lhe expliquei que teria sido uma situação ocasional e quase acreditou em mim. Mas foi amor que pouco durou. Passando aquele atraso a ser tema das suas queixas, logo descobriu que amigas e amigos, e até uma desconhecida encontrada num consultório médico, tinham idênticas histórias para contar.
A partir daí, tudo o que eu diga da justiça é ouvido com desdém. E, não contente, passou a ler os escritos do Professor Boaventura, trazendo-os à colação, em público, só para me humilhar.
Descobrir-me num blogue, tenho a certeza, seria a sua glória. Imagino-a a telefonar às cunhadas e aos cunhados, voz alta a ouvir-se pela casa toda: o Houdin voltou à adolescência, anda a blogar sabe-se lá com quem. O sossego desta sala, onde tenho o computador, acabaria. Talvez, até, tivesse deixar de blogar, ou, para o fazer, tivesse de recorrer, vexado, a um cybercafé.

Cord(i)almente

A. Houdin

In Os Cordoeiros, 5 de Março de 2004

Trazido à colação pelo A.M. no seu Renascer!...

sexta-feira, 4 de março de 2011

Escutar a infidelidade

Sempre foi possível, de um modo ou de um outro.

Tribunal Constitucional

Os lentes de Coimbra, quando ouvidos na 1ª Comissão da Assembleia da República, imputaram as falhas do sistema judicial penal aos entendimentos e às práticas dos magistrados, absolvendo as leis e as doutrinas.
O Tribunal Constitucional tem dado razão aos lentes. O que este Tribunal tem vindo a questionar, de facto, não são as disposições legais, mas os entendimentos que os tribunais judiciais fazem dessas mesmas disposições nas diversas instâncias.
Nos Acórdãos nºs 412/03 (DR 30 Série II de 2004-02-05), 13/04 (DR 34 Série II de 2004-02-10), 596/03 (DR 36 Série II de 2004-02-12), 572/03 (DR 40 Série II de 2004-02-17), 39/04 (DR 43 Série II de 2004-02-20), e 44/04 (DR 43 Série II de 2004-02-20), para referir os mais recentes, o Tribunal avalia as interpretações, julgando estas contrárias aos princípios constitucionais.
Dada a extensão das questões suscitadas e resolvidas no sentido da inconstitucionalidade, não será excessivo dizer que o Tribunal Constitucional tem-se tornado um verdadeiro arquitecto das reformas do direito penal substantivo e adjectivo.
Por outro lado, traduz a pouca sensibilidade dos tribunais judiciais para os problemas relacionados com a constitucionalidade dos procedimentos, utilizando padrões interpretativos que parecem não ser os mais adequados.
Outra ilacção a tirar, e no que tange aos que motivam o Tribunal Constitucional a intervir, será de realçar o desempenho dos advogados.
São eles que têm funcionado como consciência crítica do sistema.
Seria interessante que o Ministério Público ousasse ousar, quebrando uma linha de seguidismo processual e de conservadorismo interpretativo que dificulta a inovação.
É na fiscalização concreta, feita a partir dos casos do quotidiano judiciário, que o Tribunal Constitucional afirma e justifica o essencial da sua existência, desempenhando uma função que só teria a perder se fosse exercida por alguma instância judiciária.

In Os Cordoeiros, 4 de Março de 2004

Recuperado pelo A.M. no Renascer!...

quinta-feira, 3 de março de 2011

A prisão do tempo

Dezasseis meses de prisão preventiva sem que nesse prazo tenha sido proferida uma decisão em fase de instrução, é muito tempo. Que depois desse tempo, a liberdade seja quase um fingimento, tal são as limitações impostas, torna-se um absurdo. Quando a prisão é uma estratégia populista da investigação, a justiça fica presa à sua própria indignidade.