terça-feira, 27 de setembro de 2016

A eficácia da justiça penal*

Muito obrigado pelo convite, senhor Conselheiro Simas Santos, sobretudo por continuar a acreditar em méritos que eu não tenho.
Também um particular agradecimento a todos vós por poder falar a pessoas com certeza mais habilitadas para analisar este tema do que eu.
Com uma plateia de criminologistas (ou criminólogos?), por mim gosto mais da designação criminólogo, e ao lado de um especialista, como é o Dr. Nuno Maia, em comunicar a justiça, sinto que as linhas destes vinte minutos de fama servirão apenas a para a desconstrução, não direi implosão, de um mito: o da eficácia de uma impossibilidade.
O que devemos enfatizar no sistema de justiça penal?
A resposta das polícias?
A persistência dos procuradores?
O contributo dos advogados?
A clarividência dos juízes?
 A finalidade das prisões?
Tenho dúvidas que a generalidade dos cidadãos tenha a perceção do sistema de justiça penal como um todo.
Ou sequer que se preocupe com isso.
Tenho dúvidas que a comunicação social trate o sistema de justiça penal como um todo.
Ou que sobre isso possa ter qualquer preocupação.
O sistema de justiça penal é um bolo fatiado, ou como tal é apresentado, havendo fatias que são mais apetitosas do que outras: não há homogeneidade na massa.
Por exemplo, a maioria das vezes parece que a justiça se esgota com a aplicação das penas e que o seu cumprimento já não seja uma questão da justiça.
Outras vezes, parece que a justiça é o que pensa a polícia, como se o pensamento da polícia fosse a relevância de uma condenação ou a irrelevância de uma absolvição.
A novela de uma polícia que prende e de uma magistratura que solta tem sempre a garantia de leitores indignados, que são os leitores mais queridos de uma comunicação social sem dimensão crítica.
Permitam-me que intrometa aqui a criminologia.
O que é a criminologia?
Não diria que é uma ciência, mas uma competência para conhecer e articular os múltiplos conhecimentos que se tecem em redor do crime: dos crimes, dos criminosos, das penas e da redenção de quem as sofre.
Mas também dos múltiplos conhecimentos que se tecem em redor de quem investiga, de quem acusa, de quem defende, de quem julga e de quem guarda.
E por que não também o conhecimento sobre quem divulga e comenta?
Se pensar-se que a eficácia é uma perceção, essa perceção constrói-se através de uma mediação, fazendo do mediador o agente que certifica a eficácia.
Não tenho dúvidas que os bons e os maus polícias, ou a imagem que deles temos, dependem do modo como se constroem as notícias.
A investigação criminal sabe disso há muito tempo.
Nos Estados Unidos, no seu início, a investigação dos crimes foi um negócio em que existia uma feroz concorrência.
A publicitação dos seus feitos, muitas vezes romanceados, era-lhes fundamental para o negócio.
Por outro lado, jornais ávidos de histórias, eram parceiros ideias para tal publicitação.
Apesar da investigação criminal se ter tornado coisa pública, a matriz parece continuar a ser a mesma.
Não é, pois, sem razão que todos os manuais de criminologia contêm capítulos sobre a representação do crime nos meios de comunicação de massa: nos mass media.
Aí se pode ler, pelo menos para alguns autores, que os media não são a causa do crime, o que é óbvio, mas na sua insistência deliberadamente dramática geram um alarme público que questiona a lei e a ordem e justifica um discurso favorável a soluções repressivas.
Aliás, afigura-se-me que quanto maior é a crise dos media, que é a crise também da nossa sociedade, maior é a extensão do crime nos jornais e nos noticiários televisivos.
No sábado passado, ao ler o JN, encontrei um exemplo que poderia atestar esta afirmação.
É também curioso que o crime tivesse passado a ser matéria em programas televisivos que à partida seriam de mero entretenimento.
Vejam os programas matinais em que a moda, a culinária e o Marco Paulo rivalizam com comentaristas criminais, muitos deles polícias reformados, num discurso que, de uma só vez, investiga, acusa e condena - comentaristas indignados para um público que se indigna com muita facilidade.
Em 2005, o sociólogo António Barreto escrevia:
“Não conheço uma só pessoa que tenha tido uma experiência feliz com a justiça. Que vítima, arguido ou testemunha, tenha visto o seu caso resolvido com prontidão, urbanidade e eficácia.”
Creio que em 2016 o teor desta afirmação não seria muito diferente.
Não será uma certidão de óbito sobre a justiça mas é uma incomodidade que juízes e procuradores deveriam levar a sério.
O que aqui estará em causa não será apenas a eficácia do sistema mas a sua própria razão de ser.
Não é verdade que a justiça é para as pessoas, para a harmonia social, para o equilíbrio das relações interpessoais?
Ou será que a justiça é, ou se transformou, um monólito institucional com vocação autofágica?
Ou será que a justiça não se consegue ver a um espelho?
Vivemos em sociedades de organização estatal em que acreditamos que os equilíbrios dos poderes, incluído o poder judicial, são essenciais a uma sociedade justa, ou seja, uma sociedade com justiça.
Mas o poder judicial é o um poder? Ou é uma função?
De um poder legislativo ou executivo, em sociedades ocidentais, podemos alterar-lhes a composição pelo voto e a responsabilidade de cada um de nós está no seu próprio voto.
Podemos dizer, pelo voto, se os consideramos ou não eficazes.
Como o havemos de dizer à justiça?
O filósofo José Gil, num artigo sobre a Justiça, na Enciclopédia Einaudi, volume 39, questiona:
“Não existe verdadeira justiça senão numa sociedade justa. Mas se a sociedade o é, qual a necessidade de uma justiça?”
A verdade é que continuamos a viver em sociedades onde se multiplicam as injustiças, em que o ceticismo e o pessimismo alastram, mas a ideia de justiça parece permanecer sem erosão, por mais vaga e difusa que seja.
A funcionar como uma esperança, ainda que etérea.
Relativamente ao sistema de justiça penal, as sociedades, particularmente a nossa, têm sempre uma posição ambivalente.
Umas vezes, considera-se que a justiça que é dócil, permissiva, tímida na condenação.
Outras vezes que é uma justiça que ignora os direitos fundamentais dos cidadãos, que pratica o arbítrio, que não está atenta às condições sociais.
Mas voltemos à terra do discurso utilitário.
Terá sido para isso que me chamaram aqui.
Seria mais fácil falar da eficiência do que falar da eficácia.
Sendo a eficiência o modo e a eficácia o resultado, será de perguntar se uma justiça ineficiente pode ser uma justiça eficaz.
Se há unanimidade nas críticas à justiça, ela radica-se na falta de eficiência, nos seus atrasos quase congénitos, nas suas retóricas cujo sentido é inapreensível ao cidadão, no seu emproamento que já não condiz com o tempo que vivemos.
Pode uma justiça penal que não é eficiente ser uma justiça eficaz?
Pode ser eficaz uma justiça penal em que um grande número de cidadãos não se revê?
Creio que a eficácia do sistema de justiça penal é sempre conjuntural.
Hoje, lemos o jornal ou vemos os noticiários televisivos e somos capazes de acreditar que a justiça penal é eficaz.
Amanhã, depois de os lermos ou ver, somos capazes de denegrir essa eficácia.
Como sabem, a generalização é sempre um exercício precário de análise e que carateriza sociedades inundadas por uma informação ligeira, superficial e que parece mudar todos os dias.
Estava para concluir esta intervenção, e dei por mim a questionar-me sobre a eventual importância da overcriminalization, do excesso de criminalização nas sociedades modernas, com a criação de novos crimes, muitos deles de difícil compreensão.
O campo penal é hoje mais obscuro do que era há uns anos.
Quando se diz que um cidadão cometeu um crime de homicídio, isso é percetível, faz parte de uma noção de crime que é atávica.
Quando se diz que um cidadão cometeu um crime de corrupção para ato lícito ou um crime de tráfico de influências, não creio que a generalidade das pessoas entenda qual o possível conteúdo fáctico desses crimes.
Esse excesso torna necessariamente mais difícil a empatia entre o cidadão e a justiça, permitindo o aparecimento de uma perigosa justiça mediática.
Dado estar numa escola de criminologia, não queria deixar de terminar sem fazer uma breve reflexão sobre a criminologia para a eficácia da justiça penal.
Pode e dever ser um contributo muito relevante.
Para a investigação, para o julgamento, para a comunicação, o vosso conhecimento do crime e dos fenómenos criminais é cada vez mais importante.
O leque de conhecimentos que a criminologia pode abarcar coloca-vos num lugar privilegiado e que não pode ser ignorado.
Até mesmo depois de uma condenação, o cumprimento das penas, nomeadamente das de prisão, é matéria que deve merecer a atenção da criminologia.
Em Portugal, a criminologia como parceiro da justiça penal, no seu sentido mais lato, ainda tem um longo caminho pela sua frente.
Desejo sinceramente que o ISMAI possa estar na vanguarda desse caminho.
Presumo que tenha vindo aqui para vos dizer se a justiça penal é eficaz, ou não o é.
Ao fim e ao cabo, trouxe-vos todas estas palavras para encobrir a minha ignorância.
A verdade é que não sei se a justiça penal é ou não é eficaz.

*Discursata, no ISMAI, no âmbito do curso de Criminologia

domingo, 25 de setembro de 2016