sábado, 6 de fevereiro de 2021

Memórias (Im)prováveis

José Narciso da Cunha Rodrigues foi procurador-geral da República entre 1984 e 2000. Vinte anos depois, publica as memórias sobre esse tempo de glórias e equívocos. Livro de leitura agradável, tem o estilo que sempre lhe foi peculiar: sistematizado e linear.
Sendo o vigésimo na lista dos procuradores-gerais, foi o primeiro na exposição mediática; em abono da verdade, diga-se que perante ela nunca (a) recu(s)ou. Seria, porém, injusto dizer que foi esse o seu legado. É-lhe devida a matriz atual do Ministério Público. A perceção de que um poder só existe e afirma no confronto com um outro tornou-se na estratégia da autonomia.
O título é enganador. Estas são as memórias prováveis já que são as memórias de muitos. Possui um exaustivo índice onomástico; dele constam 223 nomes, o que facilita uma leitura integrada. Mário Soares aparece em 22 páginas e Laborinho Lúcio em 16.

Memórias Improváveis, Os Longos Anos de um Procurador-Geral, Edições Almedina, 2020

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021

O Portugal pequeno-corrupto

Do artigo de André Evangelista Marques, com o título em epígrafe, publicado pelo Público, em 28 de janeiro:

"Os exemplos desta pequena corrupção são muitos, a começar pelo mundo do trabalho. Se olharmos para o recrutamento no Estado é impossível não ver a multiplicação de concursos públicos cujos resultados estão definidos à partida, muitas vezes condicionados por influências pessoais, quando não partidárias, e estruturalmente marcados por processos burocráticos kafkianos que ajudam a mascarar a arbitrariedade. Nas empresas e outras instituições privadas o cenário é frequentemente marcado por uma excessiva endogamia, na raiz de uma “homogeneidade” pobre que redunda numa experiência limitada do mundo, como bem observou Penelope Curtis, ex-directora do Museu Gulbenkian, em entrevista ao PÚBLICO.   
Se olharmos depois para a relação que cada um de nós mantém com o Estado e com a coisa pública, o que vemos muitas vezes é uma lógica privada de utilização dos recursos públicos. É assim nos serviços de saúde, onde a multiplicação de pequenos favores (a marcação de consultas contornando listas de espera, a admissão a hospitais fora da zona de residência, etc.) conduz a uma sobrecarga que bloqueia o sistema, quando não a uma confusão entre serviços prestados a título público e privado. É assim com todas as pequenas fugas ao fisco, que no conjunto diminuem de forma significativa a massa tributável. É assim no trânsito, onde todo o tipo de pequenas infracções (estacionar em segunda fila por “breves” instantes é o exemplo clássico) tornam a circulação mais difícil. E é assim em tantas outras circunstâncias em que cada um de nós se apropria do que é de todos.
Se olharmos para o mundo dos media e da cultura, vemos também uma distorção frequente do espaço público por interesses particulares que o tornam menos plural. Desde logo quando jornalistas, curadores e académicos, por vezes pagos com dinheiros públicos, escolhem destacar, programar ou escrever sobre o trabalho de artistas ou pensadores a quem os ligam relações pessoais ou de escola, sem terem em conta critérios mais objectivos.

Aludi a três aspectos em que se manifesta esta corrupção sem corruptos, mas os exemplos poderiam multiplicar-se. É fácil atribuir a responsabilidade aos outros, a uma classe em particular, às “chefias” ou a qualquer outra categoria abstracta. Mas a verdade é que incorremos demasiadas vezes em comportamentos deste tipo, quase sempre sem consciência de estarmos a corromper ou a ser corrompidos. Em alguns casos fazemo-lo como resposta resignada às ineficiências do sistema, como quando recorremos a uma cunha para conseguir tratamento para alguém doente, ou até com boas intenções, como quando prescindimos de uma factura por generosidade para com alguém mal pago."