sábado, 30 de abril de 2022

Quebra-cabeças

Em recente conferência internacional realizada no Porto, o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça proferiu incisivas considerações sobre a incultura judicial na elaboração das respetivas decisões: "fraseologia complexa, eruditismo, considerações sociológicas, filosóficas e outras, tudo numa amálgama que torna aquilo que deveria ser facilmente apreensível num quebra-cabeças." 
Do que conheço, trata-se de uma prática que contamina as várias instâncias, ainda que, naturalmente, seja mais visível nas instâncias de recurso. A formação irrelevante nesta matéria e a ausência de um exercício crítico dentro do próprio sistema tornará difícil reverter o quebra-cabeças.

quinta-feira, 28 de abril de 2022

O perigo do perigo em processo penal

Nos termos do artigo 204º do Código de Processo Penal, nenhuma medida de coação, com exceção da prestação de termo de identidade e residência, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida, fuga ou perigo de fuga, perigo de perturbação do inquérito ou da instrução, perigo para a aquisição ou conservação da prova, ou perigo de continuidade da atividade criminosa pelo arguido ou que este perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade pública.
Predizer uma conduta humana corre o perigo, muitas vezes, do preconceito e da subjetividade. Talvez por isso os despachos que aplicam as medidas de coação sejam mais conclusivos do que expressivos. Falta-lhes a densidade dos factos onde abunda o óbvio do porque sim.
Numa sociedade em que o medo se tornou numa mercadoria sôfrega de audiências, o perigo judiciário corre o risco de não lhe ser imune.

quarta-feira, 27 de abril de 2022

Dessincronias

Os três candidatos ao Conselho de Fiscalização dos Serviços de Informações da República Portuguesa, Constança Urbano de Sousa, antiga ministra da Administração Interna, e Mário Belo Morgado, antigo secretário de Estado Adjunto e da Justiça, indicados pelo PS, e o antigo deputado Joaquim da Ponte, indicado pelo PSD, defenderam ontem, na Assembleia da República, a possibilidade daqueles Serviços terem acesso a metadados de comunicações.
Neste âmbito, por acórdão de 19 de abril último, que pode e deve ser lido aqui, o Tribunal Constitucional declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral dos artigos 4º e 6º da Lei nº 32/2008, de 18 de julho.
Com certeza que nenhum dos candidatos desconheceria que a Provedora de Justiça tinha suscitado junto do Tribunal Constitucional a eventual inconstitucionalidade daquelas normas. 

sábado, 23 de abril de 2022

Lamentações

Mais uma vez a destempo como acontece demasiadas vezes à justiça, a abertura do ano judicial voltou a ser um exercício de lamentações e não uma reflexão sobre o ano que passou e uma projeção sobre o ano que virá. A ausência de uma parte da justiça, a administrativa e fiscal, empobrece o ato e desvirtua a perceção que o cidadão dela terá. Não há razão para que não lhe seja dada voz com a presença e a intervenção do presidente do Supremo Tribunal Administrativo, também ele presidente do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais.

sexta-feira, 22 de abril de 2022

Faroeste jurisprudencial

Segundo o Público*, em acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 20 de abril, o respetivo relator, no âmbito de considerações sobre a comunicação social, não se coibiu de escrever Mas Portugal não é os Estados Unidos da América e muito menos o Faroeste.
O que estaria em causa seriam crimes de violação do segredo de justiça, ocorridos em Portugal e com intervenientes portugueses. A deriva internacional parece anómala e/ou incontida. Espera-se que o acórdão venha a ser tornado público na base de dados da jurisprudência. Uma justiça equilibrada e credível não pode abdicar da contenção.

*Para assinantes

quarta-feira, 6 de abril de 2022

O artigo quarenta

O artigo 40º do Código de Processo Penal, na redação que lhe foi dada pela Lei nº 94/2021, de 21 de dezembro, provocou uma indignação catastrofista. Parece que da sua aplicação decorrerá a paralisia dos tribunais, não por ficarem em causa os direitos dos cidadãos, mas por gerar problemas de administração funcional. A separação entre quem julga e quem tem funções jurisdicionais em fase que antecede o julgamento deve ser rigorosa e cada vez mais exigente. Ninguém é imune ao pré-juízo, por menor que possa considerar-se essa prévia intervenção. A descontaminação judicial no processo penal tem avançado ao longo dos tempos, sempre com oposições e idênticos argumentos. 

terça-feira, 5 de abril de 2022

Leituras


 O que faz então o português esperto? Nada. «Anda por aí.» Reserva-se o direito (privado e, por isso, humano por essência) de não obedecer à lei. É a sua tendência à não-inscrição que opera. Faz desse espaço de tolerância um espaço de não-inscrição por excelência. Daí a verdadeira repugnância em cumprir as leis - que não deriva de um qualquer espírito de rebeldia ou de negação do poder, mas da vocação lusitana para o não-acontecimento. De resto, esta repugnância estão tão entranhada que não só do lado do cidadão, mas também do lado do poder ele se manifesta. Em Portugal não se cumpre a lei quando se pode, mas pouco se faz para a fazer cumprir.
O que se explica, também, porque saímos de uma sociedade autoritária, profundamente marcada pela temporalidade que lhe era própria e que se estendeu a todo o campo social, a todos os projectos individuais ou colectivos: o tempo do adiamento. Os portugueses eram seres adiados, o que convinha inteiramente à não-inscrição.
Sabemos que, nesse aspecto, Portugal está a mudar em consequência da pressão da União Europeia. Agora somos obrigados, sob pena de graves sanções económicas, a cumprir certas leis - sempre controlados por instâncias supranacionais.
Mas até aqui - e ainda hoje - subsiste um regime de permissividade, de negligência e desorganização no que respeita aos mecanismos de inspecção e coacção do cumprimento efectivo da lei. Regime que atinge todos os domínios, desde a validade dos atestado médicos até à fuga ao fisco.

Pags 85-86  2ª Edição 2005