quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Fim

Um dia, acordamos cansados: é o momento da despedida.

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Direito penal

O direito penal, que deveria ser residual, tornou-se socialmente avassalador. Tratado como se fosse o eixo da solução do mal, espera-se dele respostas que, como é óbvio, não pode dar. A sua função é simples: punir quem pratica crimes com penas que permitam a integração comunitária do criminoso. Naturalmente, uma função tão singela nada tem de mediática. É preciso encontrar uma outra, melodramática e demagógica, que faça o apelo aos mais sórdidos desejos de vingança. Não deve ser fácil ter de julgar neste contexto em que o direito penal se tornou no rosto de uma nevrose coletiva.

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Brincar às encomendas

O correio distingue-se da encomenda, o que se explica aqui. Aquele é um serviço de envio de correspondência, até um limite de dois quilos; esta é um transporte de mercadorias, com ou sem valor comercial, até um limite de vinte quilos. Pelo correio vai um livro, por encomenda irá um presunto. Presumindo que o regulamento prisional usa o termo encomenda no seu sentido adequado, o que se quis foi limitar o número das encomendas e o seu peso, não fosse alguém lembrar-se de enviar numa só encomenda três presuntos. Os livros que António Arnaut e Irene Pimentel enviaram para o Estabelecimento Prisional de Évora, é legítimo admiti-lo, não foram encomendas mas correios. Ainda há pouco, no Porto, fez-se uma coleta alargada de livros a fim de serem entregues nos estabelecimentos prisionais. Independentemente da legalidade da devolução dos livros, o bom senso teria aconselhado a que se perguntasse ao seu destinatário se, não os podendo receber, não se importaria de os doar à biblioteca do Estabelecimento Prisional. Teria sido uma bela história de Natal.

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Natal

Nasceu.
Foi numa cama de folhelho
entre lençóis de estopa suja
num pardieiro velho.
Trinta horas depois a mãe pegou na enxada
e foi roçar na borda dos caminhos
manadas de ervas
para a ovelha triste.
E a criança ficou no pardieiro
só com o fumo negro das paredes
e o crepitar do fogo,
enroscada num cesto vindimeiro,
que não havia berço
naquela casa.
E ninguém conta a história do menino
que não teve
nem magos a adorá-lo,
nem vacas a aquecê-lo,
mas que há-de ter
muitos Reis da Judeia a persegui-lo;
que não terá coroas de espinhos
mas coroa de baionetas
postas até ao fundo
do seu corpo.
Ninguém há-de contar a história do menino.
Ninguém lhe vai chamar o Salvador do Mundo.

Álvaro Feijó, 1916-1941

segunda-feira, 22 de dezembro de 2014

Prisão preventiva, Ato II

O texto de Irene Pimentel sobre a prisão preventiva e a medida de segurança antes de 1974, que pode ser lido no Jugular, deveria ser estudado na escola que nas últimas décadas tem reproduzido juízes e procuradores - o Centro de Estudos Judiciários. Quando se ouve, entre a convicção e a boçalidade, que o tempo de prisão preventiva já ninguém lho tira, apercebemo-nos que os resquícios do fascismo continuam no argumentário judiciário. Não havendo uma razão direta e imediata entre a evolução do direito e o imobilismo da justiça, esta foi sempre presa fácil das razões e das práticas populistas. 

A clemência presidencial

A clemência de Tito foi a última ópera de Mozart. Revi-a, há uns tempos, no canal Mezzo. No fim da vida, a mensagem de Mozart é a de que a misericórdia dignifica o poder; de que perdoar não é ceder.
O Presidente da República, nesta época natalícia, concedeu três indultos, todos eles relativos à pena acessória de expulsão do país. Os pedidos teriam sido largas centenas.
Justifica-se que transcreva o que aqui escrevi em 22 de dezembro de 2008:
É mau que seja assim. A concessão de indultos poderia ser um significativo instrumento na realização da justiça, nomeadamente na dinamização da reinserção social. Torná-la uma caricatura é trair expectativas legais e humanas.

sábado, 20 de dezembro de 2014

Leituras



Desejo desde já informar os meus leitores que neste lugar a palavra Barredo significa a cintura de casebres que se estende à beira rio desde os arcos de Miragaia ao Monte do Seminário. É o esgoto da cidade.
Eu tinha ido na companhia de um rapaz do Lar do Porto, de folga naquele dia. Batemos de mansinho e entrámos numa porta que diz para a rua; é uma loja. O rapaz tapou o nariz e daí a um minuto já não estava ao pé de mim: «Não posso mais». E saiu imediatamente para a rua. Por este pequenino e terrível episódio pode cada um julgar da nossa desumanidade!
Eu deixei-me ficar. Ando afeito. Estou salgado. Tenho visto muito pior. Por isso mesmo tudo quanto se diz de civilização e progresso, aborrece e faz-me virar a cara.
Ela estava deitada numa enxerga. Quer-se levantar, mas não pode. É a tosse... Duma alcova interior surge o marido. É trabalhador do rio; nem sempre trabalha; a água tem marés. Três filhos daquele casal andam por lá. Não admira. O rapaz que veio comigo não pode estar um minuto dentro daquela casa. Nós somos tão desumanos! Somos tão cruéis! Nós não amamos o nosso semelhante e dizemos que sim à boca cheia!
A volta prossegue. O dia era para a romaria. Mias um casebre; era uma «ilha». O mesmo clima. As mesmas vistas. Igual vida. Em uma casa estava deitado na cama um rapaz de dezassete. Daí a nada entra a mãe e informa que os outros filhos tinham ido à Carvalhosa e este, por não ter forças, ficou deitado na cama. Em outros sítios tinha ouvido dizer Cedofeita. Agora oiço Carvalhosa e venho a saber que se trata da mesma coisa: é um Dispensário aonde multidões vão ao engano. Eles estão de pé para que se não diga que nós não fazemos caso dos doentes pulmonares, mas toda a gente sabe que não havendo casa nem pão, os remédios perdem a força de curar; e os que vão ao Dispensário não têm casa nem pão. Nós todos sabemos isto, para maior culpa, para maior castigo.
Padre Américo, O Barredo - Lugar de Mártires, de Heróis, de Santos (pags, 47/48)


sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

A pergunta fatal

Ninguém se lembraria de perguntar ao indigitado diretor do SEF se pertenceria à maçonaria. No contexto da história recente dos serviços de informação, pareceria óbvio que o indigitado diretor do SIS iria ser confrontado com essa pergunta. Sabendo-o, a resposta evasiva só pode ser mais uma acha para a fogueira das intrigas. Ou sim, ou não, seria uma forma nova de trazer dignidade à questão.

Falsas confissões

Num texto que pode ser consultado aqui, o Professor Steve Drizin elenca um conjunto de falsas confissões respeitantes a 2014. É um tema ausente da reflexão da justiça em Portugal.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Menos execuções nos EUA

Em 2014, foram executados 35 condenados à morte, o número mais baixo desde 1994.
Por outro lado, 7 condenados, um dos quais há 30 anos, viram as respetivas condenações dadas sem efeito.
Os dados constam deste relatório de leitura obrigatória.

Quando a intimidação jornalística pode ser confundida com a intimidação policial

Antes de 1974, na terra onde vivia, reputados republicanos comemoravam o 5 de outubro reunindo-se num jantar. O restaurante onde o realizavam era publicamente conhecido e o governo civil dava, pelo menos em alguns períodos, a respetiva autorização. Apesar da legalidade do ato comemorativo, dois ou três polícias, à paisana, colocavam-se ostensivamente nas imediações do restaurante. A função era intimidatória, dissuasora, não tendo qualquer relevância no sentido estritamente policial.
O controlo mediático que tem sido feito em redor do Estabelecimento Prisional de Évora traduz, mais que não seja objetivamente, o mesmo significado; é intimidatório e dissuasor. A notoriedade do preso e a sua relevância jornalística não podem cercear a liberdade e o direito de quem quer que o queira visitar sem ter de ser confrontado com uma câmara ou com um microfone.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

A confissão

George Stinney Jr., um negro de 14 anos, foi executado numa cadeira elétrica por ter assassinado duas jovens brancas;  tudo ocorreu há 70 anos.
A Juíza Carmen Mullins, estes anos passados, permitiu a reabertura do caso após a ação persistente dos defensores dos direitos civis.
O que está em causa é uma confissão que teria sido obtida coercivamente.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Culpas e desculpas

Li aqui que um magistrado do Ministério Público responsabilizou “a defesa” (dos arguidos) por grande parte dessas fugas e violações do segredo de Justiça.
Não creio que a atividade do Ministério Público se dignifique com declarações deste teor, entrando num caminho de justificações a que falta razão de ciência e equilíbrio ético.
A Professora Estrela Serrano é uma estudiosa das relações entre a comunicação social e a justiça e, por isso mesmo, não terá sido por ingenuidade que chamou à colação, no seu texto, esta declaração.
A culpa retórica dos outros é sempre a desculpa atávica dos nossos.


domingo, 14 de dezembro de 2014

Justo e equitativo

Foi o que escrevi em 30 de abril de 2010 -

Um julgamento justo e equitativo pressupõe a possibilidade de uma avaliação distanciada da prova, de uma avaliação que não esteja inquinada por condenações antecipadas. O que se está a verificar são os julgamentos sumários, não só pela violação do segredo de justiça, mas sobretudo pela assunção institucional dos factos e da prova sem que se tenha verificado qualquer contraditório. É a policialização do sistema, no seu melhor, perante o silêncio de juízes e procuradores. Não há razões de prevenção criminal que justifiquem tais dislates.

sábado, 13 de dezembro de 2014

Prisão preventiva

Nada há de mais violento do que a prisão preventiva; é uma privação da liberdade quando ainda se goza do direito inalienável à presunção de inocência.
É, por isso, que fico estupefacto quando ouço responsáveis pela sua aplicação falaram do assunto com uma leveza que roça a irresponsabilidade.
É fundamental saber o que tem sido essa medida de coação, mas parece que ninguém conhece os dados.
Nos últimos anos, por ano, quantos foram os presos preventivos e a sua percentagem no âmbito de todos os presos?
Quantos foram condenados em pena de prisão que tiveram de cumprir?
Quantos foram condenados em pena de multa?
Quantos foram absolvidos?
Quantos viram cessada a prisão preventiva antes de serem julgados?
A que tipos de crime se reportou a prisão preventiva e em que tipos de crime se reportou a absolvição?
Nesta matéria, e faltando os elementos de reflexão, o achismo corporativo judiciário é uma das doenças infantis da justiça. 

As minorias saem mais baratas

La presencia de reclusos pertenecientes a minorías en las cárceles de Estados Unidos es notablemente desproporcionada comparado con el porcentaje de la población total que ellos representan. Las personas de raza negra y los hispanos representan el 60 por ciento de los reclusos de Estados Unidos. Además, en las prisiones privadas, esta cifra puede ascender al 90 por ciento.

A cor da justiça

Na sondagem que o Expresso hoje publica, os juízes valem -6,4% e o Ministério Público vale -9,1%; em relação à anterior sondagem, o vermelho da descida continua.
No mesmo jornal, uma magistrada assina, sob pseudónimo, um interessante artigo em que analisa uma presunção de culpa acicatada pelos jornais em relação a José Sócrates.
Tão importante como o tema do artigo, é a interrogação sobre a necessidade de utilizar um pseudónimo.
Será que o medo também é a cor da justiça?

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Global status report on violence prevention 2014

 
Pode ser lido AQUI.


terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Esse organismo

Pela sua argúcia e ironia subtil, e manifesta atualidade, transcreve-se o Parecer nº E-10/2004 da Ordem dos Advogados sobre questão que lhe foi suscitada pelo Conselho Superior da Magistratura:


O CSM solicita à Ordem dos Advogados “uma tomada de posição oficial relativamente à possibilidade de um advogado, inscrito nesse organismo, poder criticar sentenças judiciais, nos meios de comunicação social, com falta de rigor, deturpação da realidade processual e omissão de factos essenciais à exacta e correcta compreensão das mesmas “.
Começamos por notar que o CSM se dirige à Ordem dos Advogados tratando-a pela designação indiferenciada de “esse organismo”. Ora, a Ordem dos Advogados é uma corporação profissional, sem nenhuma qualificação legal, é certo, mas com a natureza jurídica de associação pública profissional, constituída ao abrigo do art. 267.º/3 da Constituição.
Por seu turno, o CSM é um órgão do Estado que assegura a defesa da independência externa dos magistrados relativamente outros poderes. A ele foram confiadas a nomeação, a disciplina e a gestão das carreiras dos juízes; no entanto, apesar de a sua composição afastar a ideia de se tratar de um organismo de autogoverno dos juízes, o CSM nunca deixou de se apresentar no estado de um problema ontológico por resolver.
A Ordem dos Advogados pode sem dúvida ser consultada pelos poderes públicos sobre problemas relativos á política e à prática da profissão. E quando emite o seu parecer, pode dizer-se que toma uma “posição oficial” sobre o tema da consulta. Mas ir buscar ao reservatório dos lugares comuns o atributo de “oficial”, não teria nunca o condão de poder variar a significação do parecer, de modo a assimilá-lo a um acto administrativo unilateral decisório, eventualmente susceptível de recurso. Um acto de mera opinião ou de mera informação não tem incidência, ou apenas tem uma fraca incidência, sobre o ordenamento jurídico. Não entra sequer na acepção de jurisprudência administrativa; em direito administrativo, a jurisprudência decorre de decisões jurisdicionais “de princípio” que definem uma noção ou estabelecem uma regra nova em termos gerais e abstractos.
Ora, embora a consulta seja redigida em termos gerais e impessoais, o seu sentido é explicitado pela junção de um recorte de jornal que contém o comentário a uma decisão judicial, subscrito por um Advogado. A sentença comentada não é, contudo, fornecida nem apresentada a exame.
É, todavia, fora de questão ousarmos analisar o conteúdo do escrito do senhor Advogado, uma vez que não se trata aqui de fazer o processo do caso nem de emitir juízos sobre o conjunto dos valores que lhe estão associados.
Aliás, parecem-nos óbvias as respostas a dar às duas questões postas na consulta: sim, é legítimo criticar sentenças judiciais nos meios de comunicação social; não, não é legítimo fazê-lo com falta de rigor, deturpação da realidade processual e omissão de factos essenciais à exacta e correcta compreensão das mesmas.
O valor de verdade destas respostas é de tal modo admitido por toda a gente, que (e vamos exprimir-nos de forma breve e sentenciosa) seria porventura ocioso formular esse tipo de perguntas se não se desse o caso de elas terem a utilidade de fecundar os espíritos e os conduzir a outras impressões e até a novas interrogações.
A instituição da justiça distingue-se tradicionalmente pelo carácter da sua independência e por uma natural indocilidade ao despotismo. E porque partilham a mesma cultura, tanto os magistrados como os advogados sempre mostraram possuir uma singular liberdade e uma disposição constestatária que os opõe às arbitrariedades do poder. Aliás, muitas construções doutrinais radicam nesta oposição, tais como a separação rigorosa do público e do privado e a exigência moral da unidade do indivíduo, mediante a criação de direitos gerais do cidadão que prolongam, com a exigência de liberdade exterior, a posse da liberdade interior.
A própria racionalidade da justiça exige a liberdade do advogado como condição constitutiva, sem a qual não seria sequer possível instaurar uma justiça independente. Por seu turno, o juiz recebe a sua legitimidade da sua independência; a credibilidade do estatuto da justiça baseia-se, pois, na independência. E quanto mais poderoso é o juiz, mais a sociedade espera dele a imparcialidade, a competência e a responsabilidade.
Ora, as diferenças das posições relativas que ocupam magistrados e advogados não resultam duma hierarquia de estatuto, que não existe, mas duma distância social, espécie de hierarquia discreta, inseparável da configuração dos projectos individuais, da orientação das escolhas pessoais, das oportunidades económicas e do conjunto de factores de mobilização colectiva.
No inventário dos elementos constitutivos da personalidade, temos de contar com os materiais dominantes do inconsciente pessoal, cujos conteúdos, ao passarem para o campo da consciência, são, regra geral, de aspecto excessivo e desagradáveis, razão pela qual haviam sido reprimidos. Daí que, se o processo de assimilação do inconsciente não for acompanhado de consciência moral e do conhecimento de si mesmo, alguns indivíduos construirão um sentimento do seu eu como qualquer coisa de provocante.
A actualização da personalidade só se consegue com o alargamento da consciência e com o “desmantelamento da influência dominante e excessiva do inconsciente sobre o consciente” (C.G. Jung).
Desse processo de assimilação do inconsciente deve resultar: a) que os advogados se não mostrem tão seguros de si mesmos e não pretendam saber mais do que todos os outros; b) que os juízes abandonem o sentimento de superioridade e deixem de se representar o estado de espírito de quem se toma por “semelhante a Deus”, reputando a sua justiça não apenas como a dum “juiz”, mas como expressão da sua natureza sagrada.
Quer os juízes, quer os advogados não são a “boca da lei”, mas simples intérpretes de numerosas fontes de direito, algumas superiores à própria lei. Uma delas é a inteligência, embora mais uma vez se mostre desaconselhável que advogados e juízes saiam duma única escola; a diversificação do recrutamento dos dois corpos profissionais decerto acabaria com a classificação petrificada das inteligências: inteligência dialéctica dos advogados, inteligência hermética dos juízes.
Aconselhável é, pois, a diversidade do recrutamento, mas com formação especial comum e com partilha activa da cultura institucional da justiça.
A partilha da cultura actua como instrumento de educação que estimula a dominar pela consciência e pela delicadeza a energia dos processos psíquicos, de modo a que as relações e as situações novas sejam admitidas sem cuidados e em confiança, pondo de parte objecções que possam vir ao espírito e evitando as feridas narcísicas, tão difíceis de cicatrizar.
Tocqueville na sua obra L’Ancien Régime et la Révolution, lembra um momento histórico exemplar da confraternidade possível de duas profissões que se distinguem das outras pelo seu carácter de independência. Quando, em resultado da reforma da instituição parlamentar confiada a Maupéou por Luís XV de França, os magistrados sofreram a perda do seu estado e dos poderes, os principais advogados que pleiteavam perante o Parlamento associaram-se voluntariamente à sua sorte, renunciando àquilo que fazia a sua glória e a sua riqueza, condenando-se deste modo ao silêncio, de preferência a comparecer diante de magistrados desonrados. Tocqueville comenta o episódio com estas palavras que servem de epílogo ao que queremos salientar: “Não conheço nada de maior na história dos povos livres do que aquilo que aconteceu nesta ocasião, e todavia isso passava-se no século XVIII, ao lado da corte de Luís XV”.


É este, salvo melhor, o meu parecer.
Alberto Luís
 
 
Foi aprovado em 22 de outubro de 2004

domingo, 7 de dezembro de 2014

90 anos

Talvez também venha a fazer 90 anos. O que direi, então, é que fui do tempo de Mário Soares. A paixão, a um tempo, da liberdade e da vida é o propósito maior da política. Foi o que lhe aprendi nas minhas dúvidas e nas minhas certezas.

Sermão aos mexilhões

Os peixes de ontem são os mexilhões de hoje. Parecendo tão diferentes, têm esse atributo comum: ouvem e calam. Mas mesmo calados, é improvável que não descortinem o sal da água e a mentira da vida. O que vos tiraram, foi do nada que tiraram. Por isso se podem vangloriar que nada tiraram. Se cuidais, porventura, que estas injustiças entre vós se toleram e passam sem castigo, enganai-vos.*

*Padre António Vieira

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Que mais falta a isto, que ninguém ousa dizer e todos entendem?

"Ora, se palavras neutras são culpa, que fariam as positivas, e as queixas formais, et quis est Deus qui eos eriperet das mãos dos senhores inquisidores, que logo gritam ao povo que é uma causa da santa fé? O gemer e o suspirar, que a natureza reservou por arma privilegiada ao oprimido, é interdito àquele povo. Palavras que nem sequer provam queixa, mas que apenas dão lugar a essa presunção, e esta talvez duvidosa, castigam-se num palco público severamente, condena-se aquela desafortunada ao cárcere, à infâmia perpétua e ao desterro; com ignomínia eterna de uma família. Aquela pobre mulher terá dito em conversa familiar quaisquer palavras que terão feito presumir que a sua confissão de 1662 era falsa e extorquida por medo da morte, por causa dos horrores da prisão e dos cruéis tormentos; ou que terá lamentado a sua má fortuna de ser acusada injustamente e de ter caído nas mãos de um tribunal tão rigoroso, ainda que as palavras não tenham este sentido, e se pudessem entender de outro modo. Aquele fogo também reprime as lágrimas e afoga os gemidos, e concentra o incêndio no coração. Que mais falta a isto, que ninguém ousa dizer e todos entendem?"
Padre António Vieira, Escritos sobre os Judeus e a Inquisição

Ar de escuta

Do DIÁRIO, de Mário Sacramento, em Dezembro, 5 (1967) -
 
Lá estive outra vez em Lisboa. A mesma sedução e a mesma repulsa. As oportunidades e o desamparo, com aqueles fins de tarde tão luminosos e melancólicos a um tempo, como o Cesário o viu.
Fui de carro com o Costa e Melo e Esposa. Passámos depois nos sítios por onde andei «ao dilúvio», mas já mal se apercebe a extensão do flagelo. Não consegui localizar o sítio onde abandonámos o carro. E verifiquei que não chegámos a atingir a auto-estrada, afinal: de noite - e noite como aquela, sobretudo, o engano é fácil para quem não está familiarizado com o ambiente.
Diz-se que os Serviços Meteorológicos previram o cataclismo, mas os poderes não deixaram dar a notícia... para não suscitar alarmes. Houve também telefonemas para a Emissora, a informar de cortes de pontes, que não foram tomados em consideração e originaram mortes, entre elas a de um médico. Enfim, a sagrada paz portuguesa: morre calado e contente!
O gerente da Arcádia, Dias de Carvalho, não só perdeu o automóvel, mas todo o recheio da casa. Ainda por cima, ficou com a família colateral a seu cargo, por morte dum irmão ou irmã, já não sei. Anda tão desorientado, que não voltou a pôr os pés na casa onde trabalha. Naquela zona ribeirinha da cidade - Largo de S. Paulo, etc. - as casas foram totalmente saqueadas pelas águas. Houve ourives, p. ex., a quem a corrente da inundação levou todas as jóias.
Depois de gatafunhar os livros, almocei com o Namora, em casa dele. À tarde, encontrei o Armindo Rodrigues e o Manuel Mendes no Chiado, como é hábito. O último com um aspecto e uma fadiga física que me impressionaram: perdeu, nos últimos meses, oito quilos, anda com uma diarreia há meses, já foi radiografado e o Cascão de Anciães atribui a malaise a uma virose das que os expedicionários têm trazido de África. Será mentira piedosa? Não tem onde cair morto, coitado, se tiver de largar a pena! Embora com manifesto esforço, continua pétillant de espírito, contando as mil histórias, em catadupa, que só ele conhece. Falou-me com saudade do Caraça: todos os dias pensa nele, inquirindo o que opinaria sobre isto sobre aquilo, se fosse vivo. Lá andámos os três, de livraria em livraria, como outros vão de taberna em taberna.! Sempre a olhar quem se encosta à estante mais próxima, com ar de escuta!
A despeito da presença do Embaixador da França, e do Forjaz Trigueiros, entre outros, a PIDE proibiu um jantar, que seria seguido de colóquio, do Claude Roy com umas três dezenas de intelectuais. O Trigueiros telefonou ao ministro dos Negócios Estrangeiros, que achou «impossível» e prometeu intervir, mas o facto é que a Srª D. PIDE só condescendeu em que seis deles (nem mais um!) fossem jantar para outro lado e... sem colóquio... Comeram pato mudo, provavelmente!
No regresso para cá, três viúvas menopausadas, à minha frente, no «foguete», contando e recontando as suas amarguras. Todas de saias muito curtas, mas todas em luta com elas para esconderem os joelhos! Trariam contrabando?! O certo é que me senti tão viúvo como elas, mas das ilusões, que são o sal da terra!
 


terça-feira, 2 de dezembro de 2014

O fim da dialética

O modelo que padroniza a investigação criminal balanceia-se entre a necessidade da eficácia nos resultados e a defesa das garantias nos meios. Há, pois, uma tensão nessa dinâmica em que, por um lado, está o Ministério Público e, por outro, o Juiz das Liberdades. O que se espera dos seus procedimentos não é a consonância nos propósitos mas a vigilância recíproca nas condutas. Porém, parece estar a assistir-se ao esboroar desse modelo, com a confusão dos papéis e o fim da dialética investigatória.