Muito obrigado pelo convite, senhor
Conselheiro Simas Santos, sobretudo por continuar a acreditar em méritos que eu
não tenho.
Também
um particular agradecimento a todos vós por poder falar a pessoas com certeza
mais habilitadas para analisar este tema do que eu.
Com
uma plateia de criminologistas (ou criminólogos?), por mim gosto mais da
designação criminólogo, e ao lado de um especialista, como é o Dr. Nuno Maia,
em comunicar a justiça, sinto que as linhas destes vinte minutos de fama
servirão apenas a para a desconstrução, não direi implosão, de um mito: o da
eficácia de uma impossibilidade.
O
que devemos enfatizar no sistema de justiça penal?
A
resposta das polícias?
A
persistência dos procuradores?
O
contributo dos advogados?
A
clarividência dos juízes?
A finalidade das prisões?
Tenho
dúvidas que a generalidade dos cidadãos tenha a perceção do sistema de justiça
penal como um todo.
Ou
sequer que se preocupe com isso.
Tenho
dúvidas que a comunicação social trate o sistema de justiça penal como um todo.
Ou
que sobre isso possa ter qualquer preocupação.
O
sistema de justiça penal é um bolo fatiado, ou como tal é apresentado, havendo
fatias que são mais apetitosas do que outras: não há homogeneidade na massa.
Por
exemplo, a maioria das vezes parece que a justiça se esgota com a aplicação das
penas e que o seu cumprimento já não seja uma questão da justiça.
Outras
vezes, parece que a justiça é o que pensa
a polícia, como se o pensamento da
polícia fosse a relevância de uma condenação ou a irrelevância de uma
absolvição.
A
novela de uma polícia que prende e de uma magistratura que solta tem sempre a
garantia de leitores indignados, que são os leitores mais queridos de uma
comunicação social sem dimensão crítica.
Permitam-me
que intrometa aqui a criminologia.
O
que é a criminologia?
Não
diria que é uma ciência, mas uma competência para conhecer e articular os
múltiplos conhecimentos que se tecem em redor do crime: dos crimes, dos
criminosos, das penas e da redenção de quem as sofre.
Mas
também dos múltiplos conhecimentos que se tecem em redor de quem investiga, de
quem acusa, de quem defende, de quem julga e de quem guarda.
E
por que não também o conhecimento sobre quem divulga e comenta?
Se
pensar-se que a eficácia é uma perceção, essa perceção constrói-se através de
uma mediação, fazendo do mediador o agente que certifica a eficácia.
Não
tenho dúvidas que os bons e os maus polícias, ou a imagem que deles temos,
dependem do modo como se constroem as notícias.
A
investigação criminal sabe disso há muito tempo.
Nos
Estados Unidos, no seu início, a investigação dos crimes foi um negócio em que
existia uma feroz concorrência.
A
publicitação dos seus feitos, muitas vezes romanceados, era-lhes fundamental
para o negócio.
Por
outro lado, jornais ávidos de histórias, eram parceiros ideias para tal
publicitação.
Apesar
da investigação criminal se ter tornado coisa
pública, a matriz parece continuar a ser a mesma.
Não
é, pois, sem razão que todos os manuais de criminologia contêm capítulos sobre
a representação do crime nos meios de comunicação de massa: nos mass media.
Aí
se pode ler, pelo menos para alguns autores, que os media não são a causa do
crime, o que é óbvio, mas na sua insistência deliberadamente dramática geram um
alarme público que questiona a lei e a ordem e justifica um discurso favorável
a soluções repressivas.
Aliás,
afigura-se-me que quanto maior é a crise dos media, que é a crise também da
nossa sociedade, maior é a extensão do crime nos jornais e nos noticiários
televisivos.
No
sábado passado, ao ler o JN, encontrei um exemplo que poderia atestar esta
afirmação.
É
também curioso que o crime tivesse passado a ser matéria em programas televisivos
que à partida seriam de mero entretenimento.
Vejam
os programas matinais em que a moda, a culinária e o Marco Paulo rivalizam com
comentaristas criminais, muitos deles polícias reformados, num discurso que, de
uma só vez, investiga, acusa e condena - comentaristas indignados para um
público que se indigna com muita facilidade.
Em
2005, o sociólogo António Barreto escrevia:
“Não conheço uma só pessoa que tenha tido uma experiência feliz com a justiça. Que vítima, arguido ou testemunha, tenha visto o seu caso resolvido com prontidão, urbanidade e eficácia.”
“Não conheço uma só pessoa que tenha tido uma experiência feliz com a justiça. Que vítima, arguido ou testemunha, tenha visto o seu caso resolvido com prontidão, urbanidade e eficácia.”
Creio
que em 2016 o teor desta afirmação não seria muito diferente.
Não
será uma certidão de óbito sobre a justiça mas é uma incomodidade que juízes e
procuradores deveriam levar a sério.
O
que aqui estará em causa não será apenas a eficácia do sistema mas a sua
própria razão de ser.
Não
é verdade que a justiça é para as pessoas, para a harmonia social, para o
equilíbrio das relações interpessoais?
Ou
será que a justiça é, ou se transformou, um monólito institucional com vocação
autofágica?
Ou
será que a justiça não se consegue ver a um espelho?
Vivemos
em sociedades de organização estatal em que acreditamos que os equilíbrios dos
poderes, incluído o poder judicial, são essenciais a uma sociedade justa, ou
seja, uma sociedade com justiça.
Mas
o poder judicial é o um poder? Ou é uma função?
De
um poder legislativo ou executivo, em sociedades ocidentais, podemos
alterar-lhes a composição pelo voto e a responsabilidade de cada um de nós está
no seu próprio voto.
Podemos
dizer, pelo voto, se os consideramos ou não eficazes.
Como
o havemos de dizer à justiça?
O
filósofo José Gil, num artigo sobre a Justiça, na Enciclopédia Einaudi, volume
39, questiona:
“Não
existe verdadeira justiça senão numa sociedade justa. Mas se a sociedade o é,
qual a necessidade de uma justiça?”
A
verdade é que continuamos a viver em sociedades onde se multiplicam as
injustiças, em que o ceticismo e o pessimismo alastram, mas a ideia de justiça
parece permanecer sem erosão, por mais vaga e difusa que seja.
A
funcionar como uma esperança, ainda que etérea.
Relativamente
ao sistema de justiça penal, as sociedades, particularmente a nossa, têm sempre
uma posição ambivalente.
Umas
vezes, considera-se que a justiça que é dócil, permissiva, tímida na
condenação.
Outras
vezes que é uma justiça que ignora os direitos fundamentais dos cidadãos, que
pratica o arbítrio, que não está atenta às condições sociais.
Mas
voltemos à terra do discurso utilitário.
Terá
sido para isso que me chamaram aqui.
Seria
mais fácil falar da eficiência do que falar da eficácia.
Sendo
a eficiência o modo e a eficácia o resultado, será de perguntar se uma justiça
ineficiente pode ser uma justiça eficaz.
Se
há unanimidade nas críticas à justiça, ela radica-se na falta de eficiência,
nos seus atrasos quase congénitos, nas suas retóricas cujo sentido é
inapreensível ao cidadão, no seu emproamento que já não condiz com o tempo que vivemos.
Pode
uma justiça penal que não é eficiente ser uma justiça eficaz?
Pode
ser eficaz uma justiça penal em que um grande número de cidadãos não se revê?
Creio
que a eficácia do sistema de justiça penal é sempre conjuntural.
Hoje,
lemos o jornal ou vemos os noticiários televisivos e somos capazes de acreditar
que a justiça penal é eficaz.
Amanhã,
depois de os lermos ou ver, somos capazes de denegrir essa eficácia.
Como
sabem, a generalização é sempre um exercício precário de análise e que
carateriza sociedades inundadas por
uma informação ligeira, superficial e que parece mudar todos os dias.
Estava
para concluir esta intervenção, e dei por mim a questionar-me sobre a eventual
importância da overcriminalization,
do excesso de criminalização nas sociedades modernas, com a criação de novos
crimes, muitos deles de difícil compreensão.
O
campo penal é hoje mais obscuro do que era há uns anos.
Quando
se diz que um cidadão cometeu um crime de homicídio, isso é percetível, faz
parte de uma noção de crime que é atávica.
Quando
se diz que um cidadão cometeu um crime de corrupção para ato lícito ou um crime
de tráfico de influências, não creio que a generalidade das pessoas entenda
qual o possível conteúdo fáctico desses crimes.
Esse
excesso torna necessariamente mais difícil a empatia entre o cidadão e a
justiça, permitindo o aparecimento de uma perigosa justiça mediática.
Dado
estar numa escola de criminologia, não queria deixar de terminar sem fazer uma
breve reflexão sobre a criminologia para a eficácia da justiça penal.
Pode
e dever ser um contributo muito relevante.
Para
a investigação, para o julgamento, para a comunicação, o vosso conhecimento do
crime e dos fenómenos criminais é cada vez mais importante.
O
leque de conhecimentos que a criminologia pode abarcar coloca-vos num lugar
privilegiado e que não pode ser ignorado.
Até
mesmo depois de uma condenação, o cumprimento das penas, nomeadamente das de
prisão, é matéria que deve merecer a atenção da criminologia.
Em
Portugal, a criminologia como parceiro da justiça penal, no seu sentido mais
lato, ainda tem um longo caminho pela sua frente.
Desejo
sinceramente que o ISMAI possa estar na vanguarda desse caminho.
Presumo
que tenha vindo aqui para vos dizer se a justiça penal é eficaz, ou não o é.
Ao
fim e ao cabo, trouxe-vos todas estas palavras para encobrir a minha
ignorância.
A
verdade é que não sei se a justiça penal é ou não é eficaz.
*Discursata, no ISMAI, no âmbito do curso de Criminologia