Do artigo de André Evangelista Marques, com o título em epígrafe, publicado pelo Público, em 28 de janeiro:
Se olharmos depois para a relação que cada um de nós mantém com o Estado e com a coisa pública, o que vemos muitas vezes é uma lógica privada de utilização dos recursos públicos. É assim nos serviços de saúde, onde a multiplicação de pequenos favores (a marcação de consultas contornando listas de espera, a admissão a hospitais fora da zona de residência, etc.) conduz a uma sobrecarga que bloqueia o sistema, quando não a uma confusão entre serviços prestados a título público e privado. É assim com todas as pequenas fugas ao fisco, que no conjunto diminuem de forma significativa a massa tributável. É assim no trânsito, onde todo o tipo de pequenas infracções (estacionar em segunda fila por “breves” instantes é o exemplo clássico) tornam a circulação mais difícil. E é assim em tantas outras circunstâncias em que cada um de nós se apropria do que é de todos.
Se olharmos para o mundo dos media e da cultura, vemos também uma distorção frequente do espaço público por interesses particulares que o tornam menos plural. Desde logo quando jornalistas, curadores e académicos, por vezes pagos com dinheiros públicos, escolhem destacar, programar ou escrever sobre o trabalho de artistas ou pensadores a quem os ligam relações pessoais ou de escola, sem terem em conta critérios mais objectivos.
Aludi a três aspectos em que se manifesta esta corrupção sem corruptos, mas os exemplos poderiam multiplicar-se. É fácil atribuir a responsabilidade aos outros, a uma classe em particular, às “chefias” ou a qualquer outra categoria abstracta. Mas a verdade é que incorremos demasiadas vezes em comportamentos deste tipo, quase sempre sem consciência de estarmos a corromper ou a ser corrompidos. Em alguns casos fazemo-lo como resposta resignada às ineficiências do sistema, como quando recorremos a uma cunha para conseguir tratamento para alguém doente, ou até com boas intenções, como quando prescindimos de uma factura por generosidade para com alguém mal pago."