Alberto Luís foi um advogado ilustre. Casado com Agustina Bessa-Luís, estou em crer que muitos dos atrevimentos da escritora na área da justiça não lhe terão sido alheios.
Relatou o acórdão do Conselho Geral da Ordem dos Advogados, de 22 de outubro de 2004, sobre a liberdade de crítica às decisões judiciais.
Trata-se de um texto pleno de ironia e elegância, a seguir transcrito em singela homenagem, que deveria ser de leitura obrigatória na escola que forma juízes e magistrados.
1. O Advogado é livre de criticar decisões judicias nos meios de comunicação social, mas as operações intelectuais da crítica devem respeitar a realidade processual e a matéria de facto essencialmente relevante. 2. Contudo, para discernir um juízo profundo sobre a questão, não podemos contentar-nos com análises apenas formalmente correctas, dogmáticas e moralistas.
O Conselho Superior da Magistratura solicita à Ordem dos Advogados “uma tomada de posição oficial relativamente à possibilidade de um advogado, inscrito nesse organismo, poder criticar sentenças judiciais, nos meios de comunicação social, com falta de rigor, deturpação da realidade processual e omissão de factos essenciais à exacta e correcta compreensão das mesmas”.
Começamos por notar que o CSM se dirige à Ordem dos Advogados tratando-a pela designação indiferenciada de “esse organismo”. Ora, a Ordem dos Advogados é uma corporação profissional, sem nenhuma qualificação legal, é certo, mas com a natureza jurídica de associação pública profissional, constituída ao abrigo do art. 267.º/3 da Constituição.
Por seu turno, o CSM é um órgão do Estado que assegura a defesa da independência externa dos magistrados relativamente a outros poderes. A ele foram confiadas a nomeação, a disciplina e a gestão das carreiras dos juízes; no entanto, apesar de a sua composição afastar a ideia de se tratar de um organismo de autogoverno dos juízes, o CSM nunca deixou de se apresentar no estado de problema ontológico por resolver.
A Ordem dos Advogados pode sem dúvida ser consultada pelos poderes públicos sobre problemas relativos à política e à prática da profissão. E quando emite o seu parecer, pode dizer-se que toma uma “posição oficial” sobre o tema da consulta. Mas ir buscar ao reservatório dos lugares comuns o atributo de “oficial”, não teria nunca o condão de poder variar a significação do parecer, de modo a assimilá-lo a um acto administrativo unilateral decisório, eventualmente susceptível de recurso. Um acto de mera opinião ou de mera informação não tem incidência, ou apenas tem uma fraca incidência, sobre o ordenamento jurídico. Não entra sequer na acepção de jurisprudência administrativa; em direito administrativo, a jurisprudência decorre de decisões jurisdicionais “de princípio” que definem uma noção ou estabelecem uma regra nova em termos gerais e abstractos.
Ora, embora a consulta seja redigida em termos gerais e impessoais, o seu sentido é explicitado pela junção de um recorte de jornal que contém o comentário a uma decisão judicial, subscrito por um Advogado. A sentença comentada não é, contudo, fornecida nem apresentada a exame.
É, todavia, fora de questão ousarmos analisar o conteúdo do escrito do senhor Advogado, uma vez que não se trata aqui de fazer o processo do caso nem de emitir juízos sobre o conjunto dos valores que lhe estão associados.
Aliás, parecem-nos óbvias as respostas a dar às duas questões postas na consulta: sim, é legítimo criticar sentenças judiciais nos meios de comunicação social; não, não é legítimo fazê-lo com falta de rigor, deturpação da realidade processual e omissão de factos essenciais à exacta e correcta compreensão das mesmas.
O valor de verdade destas respostas é de tal modo admitido por toda a gente, que (e vamos exprimir-nos de forma breve e sentenciosa) seria porventura ocioso formular esse tipo de perguntas se não se desse o caso de elas terem a utilidade de fecundar os espíritos e os conduzir a outras impressões e até a novas interrogações.
A instituição da justiça distingue-se tradicionalmente pelo carácter da sua independência e por uma natural indocilidade ao despotismo. E porque partilham a mesma cultura, tanto os magistrados como os advogados sempre mostraram possuir uma singular liberdade e uma disposição constestatária que os opõe às arbitrariedades do poder. Aliás, muitas construções doutrinais radicam nesta oposição, tais como a separação rigorosa do público e do privado e a exigência moral da unidade do indivíduo, mediante a criação de direitos gerais do cidadão que prolongam, com a exigência de liberdade exterior, a posse da liberdade interior.
A própria racionalidade da justiça exige a liberdade do advogado como condição constitutiva, sem a qual não seria sequer possível instaurar uma justiça independente. Por seu turno, o juiz recebe a sua legitimidade da sua independência; a credibilidade do estatuto da justiça baseia-se, pois, na independência. E quanto mais poderoso é o juiz, mais a sociedade espera dele a imparcialidade, a competência e a responsabilidade.
Ora, as diferenças das posições relativas que ocupam magistrados e advogados não resultam duma hierarquia de estatuto, que não existe, mas duma distância social, espécie de hierarquia discreta, inseparável da configuração dos projectos individuais, da orientação das escolhas pessoais, das oportunidades económicas e do conjunto de factores de mobilização colectiva.
No inventário dos elementos constitutivos da personalidade, temos de contar com os materiais dominantes do inconsciente pessoal, cujos conteúdos, ao passarem para o campo da consciência, são, regra geral, de aspecto excessivo e desagradáveis, razão pela qual haviam sido reprimidos. Daí que, se o processo de assimilação do inconsciente não for acompanhado de consciência moral e do conhecimento de si mesmo, alguns indivíduos construirão um sentimento do seu eu como qualquer coisa de provocante.
A actualização da personalidade só se consegue com o alargamento da consciência e com o “desmantelamento da influência dominante e excessiva do inconsciente sobre o consciente” (C.G. Jung).
Desse processo de assimilação do inconsciente deve resultar: a) que os advogados se não mostrem tão seguros de si mesmos e não pretendam saber mais do que todos os outros; b) que os juízes abandonem o sentimento de superioridade e deixem de se representar o estado de espírito de quem se toma por “semelhante a Deus”, reputando a sua justiça não apenas como a dum “juiz”, mas como expressão da sua natureza sagrada.
Quer os juízes, quer os advogados não são a “boca da lei”, mas simples intérpretes de numerosas fontes de direito, algumas superiores à própria lei. Uma delas é a inteligência, embora mais uma vez se mostre desaconselhável que advogados e juízes saiam duma única escola; a diversificação do recrutamento dos dois corpos profissionais decerto acabaria com a classificação petrificada das inteligências: inteligência dialéctica dos advogados, inteligência hermética dos juízes.
Aconselhável é, pois, a diversidade do recrutamento, mas com formação especial comum e com partilha activa da cultura institucional da justiça.
A partilha da cultura actua como instrumento de educação que estimula a dominar pela consciência e pela delicadeza a energia dos processos psíquicos, de modo a que as relações e as situações novas sejam admitidas sem cuidados e em confiança, pondo de parte objecções que possam vir ao espírito e evitando as feridas narcísicas, tão difíceis de cicatrizar.
Tocqueville, na sua obra L’Ancien Régime et la Révolution, lembra um momento histórico exemplar da confraternidade possível de duas profissões que se distinguem das outras pelo seu carácter de independência. Quando, em resultado da reforma da instituição parlamentar confiada a Maupéou por Luís XV de França, os magistrados sofreram a perda do seu estado e dos poderes, os principais advogados que pleiteavam perante o Parlamento associaram-se voluntariamente à sua sorte, renunciando àquilo que fazia a sua glória e a sua riqueza, condenando-se deste modo ao silêncio, de preferência a comparecer diante de magistrados desonrados. Tocqueville comenta o episódio com estas palavras que servem de epílogo ao que queremos salientar: “Não conheço nada de maior na história dos povos livres do que aquilo que aconteceu nesta ocasião, e todavia isso passava-se no século XVIII, ao lado da corte de Luís XV”.
O Conselho Superior da Magistratura solicita à Ordem dos Advogados “uma tomada de posição oficial relativamente à possibilidade de um advogado, inscrito nesse organismo, poder criticar sentenças judiciais, nos meios de comunicação social, com falta de rigor, deturpação da realidade processual e omissão de factos essenciais à exacta e correcta compreensão das mesmas”.
Começamos por notar que o CSM se dirige à Ordem dos Advogados tratando-a pela designação indiferenciada de “esse organismo”. Ora, a Ordem dos Advogados é uma corporação profissional, sem nenhuma qualificação legal, é certo, mas com a natureza jurídica de associação pública profissional, constituída ao abrigo do art. 267.º/3 da Constituição.
Por seu turno, o CSM é um órgão do Estado que assegura a defesa da independência externa dos magistrados relativamente a outros poderes. A ele foram confiadas a nomeação, a disciplina e a gestão das carreiras dos juízes; no entanto, apesar de a sua composição afastar a ideia de se tratar de um organismo de autogoverno dos juízes, o CSM nunca deixou de se apresentar no estado de problema ontológico por resolver.
A Ordem dos Advogados pode sem dúvida ser consultada pelos poderes públicos sobre problemas relativos à política e à prática da profissão. E quando emite o seu parecer, pode dizer-se que toma uma “posição oficial” sobre o tema da consulta. Mas ir buscar ao reservatório dos lugares comuns o atributo de “oficial”, não teria nunca o condão de poder variar a significação do parecer, de modo a assimilá-lo a um acto administrativo unilateral decisório, eventualmente susceptível de recurso. Um acto de mera opinião ou de mera informação não tem incidência, ou apenas tem uma fraca incidência, sobre o ordenamento jurídico. Não entra sequer na acepção de jurisprudência administrativa; em direito administrativo, a jurisprudência decorre de decisões jurisdicionais “de princípio” que definem uma noção ou estabelecem uma regra nova em termos gerais e abstractos.
Ora, embora a consulta seja redigida em termos gerais e impessoais, o seu sentido é explicitado pela junção de um recorte de jornal que contém o comentário a uma decisão judicial, subscrito por um Advogado. A sentença comentada não é, contudo, fornecida nem apresentada a exame.
É, todavia, fora de questão ousarmos analisar o conteúdo do escrito do senhor Advogado, uma vez que não se trata aqui de fazer o processo do caso nem de emitir juízos sobre o conjunto dos valores que lhe estão associados.
Aliás, parecem-nos óbvias as respostas a dar às duas questões postas na consulta: sim, é legítimo criticar sentenças judiciais nos meios de comunicação social; não, não é legítimo fazê-lo com falta de rigor, deturpação da realidade processual e omissão de factos essenciais à exacta e correcta compreensão das mesmas.
O valor de verdade destas respostas é de tal modo admitido por toda a gente, que (e vamos exprimir-nos de forma breve e sentenciosa) seria porventura ocioso formular esse tipo de perguntas se não se desse o caso de elas terem a utilidade de fecundar os espíritos e os conduzir a outras impressões e até a novas interrogações.
A instituição da justiça distingue-se tradicionalmente pelo carácter da sua independência e por uma natural indocilidade ao despotismo. E porque partilham a mesma cultura, tanto os magistrados como os advogados sempre mostraram possuir uma singular liberdade e uma disposição constestatária que os opõe às arbitrariedades do poder. Aliás, muitas construções doutrinais radicam nesta oposição, tais como a separação rigorosa do público e do privado e a exigência moral da unidade do indivíduo, mediante a criação de direitos gerais do cidadão que prolongam, com a exigência de liberdade exterior, a posse da liberdade interior.
A própria racionalidade da justiça exige a liberdade do advogado como condição constitutiva, sem a qual não seria sequer possível instaurar uma justiça independente. Por seu turno, o juiz recebe a sua legitimidade da sua independência; a credibilidade do estatuto da justiça baseia-se, pois, na independência. E quanto mais poderoso é o juiz, mais a sociedade espera dele a imparcialidade, a competência e a responsabilidade.
Ora, as diferenças das posições relativas que ocupam magistrados e advogados não resultam duma hierarquia de estatuto, que não existe, mas duma distância social, espécie de hierarquia discreta, inseparável da configuração dos projectos individuais, da orientação das escolhas pessoais, das oportunidades económicas e do conjunto de factores de mobilização colectiva.
No inventário dos elementos constitutivos da personalidade, temos de contar com os materiais dominantes do inconsciente pessoal, cujos conteúdos, ao passarem para o campo da consciência, são, regra geral, de aspecto excessivo e desagradáveis, razão pela qual haviam sido reprimidos. Daí que, se o processo de assimilação do inconsciente não for acompanhado de consciência moral e do conhecimento de si mesmo, alguns indivíduos construirão um sentimento do seu eu como qualquer coisa de provocante.
A actualização da personalidade só se consegue com o alargamento da consciência e com o “desmantelamento da influência dominante e excessiva do inconsciente sobre o consciente” (C.G. Jung).
Desse processo de assimilação do inconsciente deve resultar: a) que os advogados se não mostrem tão seguros de si mesmos e não pretendam saber mais do que todos os outros; b) que os juízes abandonem o sentimento de superioridade e deixem de se representar o estado de espírito de quem se toma por “semelhante a Deus”, reputando a sua justiça não apenas como a dum “juiz”, mas como expressão da sua natureza sagrada.
Quer os juízes, quer os advogados não são a “boca da lei”, mas simples intérpretes de numerosas fontes de direito, algumas superiores à própria lei. Uma delas é a inteligência, embora mais uma vez se mostre desaconselhável que advogados e juízes saiam duma única escola; a diversificação do recrutamento dos dois corpos profissionais decerto acabaria com a classificação petrificada das inteligências: inteligência dialéctica dos advogados, inteligência hermética dos juízes.
Aconselhável é, pois, a diversidade do recrutamento, mas com formação especial comum e com partilha activa da cultura institucional da justiça.
A partilha da cultura actua como instrumento de educação que estimula a dominar pela consciência e pela delicadeza a energia dos processos psíquicos, de modo a que as relações e as situações novas sejam admitidas sem cuidados e em confiança, pondo de parte objecções que possam vir ao espírito e evitando as feridas narcísicas, tão difíceis de cicatrizar.
Tocqueville, na sua obra L’Ancien Régime et la Révolution, lembra um momento histórico exemplar da confraternidade possível de duas profissões que se distinguem das outras pelo seu carácter de independência. Quando, em resultado da reforma da instituição parlamentar confiada a Maupéou por Luís XV de França, os magistrados sofreram a perda do seu estado e dos poderes, os principais advogados que pleiteavam perante o Parlamento associaram-se voluntariamente à sua sorte, renunciando àquilo que fazia a sua glória e a sua riqueza, condenando-se deste modo ao silêncio, de preferência a comparecer diante de magistrados desonrados. Tocqueville comenta o episódio com estas palavras que servem de epílogo ao que queremos salientar: “Não conheço nada de maior na história dos povos livres do que aquilo que aconteceu nesta ocasião, e todavia isso passava-se no século XVIII, ao lado da corte de Luís XV”.