sábado, 30 de setembro de 2023

Leituras

 

Com o tempo, a classe dos ladrões, ou proprietários de escravos - que se apoderara de todas as terras, e possuía todos os meios de criação de riqueza -, começou a compreender que a maneira mais fácil de gerir os seus escravos e de os explorar não era possuí-los, como outrora, separadamente, tendo cada proprietário um certo número de escravos como se de outras tantas cabeças de gado se tratasse; que era preferível dar aos escravos uma estreita margem de liberdade, que tornasse possível impor-lhes a responsabilidade de proverem à sua própria subsistência, obrigando-os ao mesmo tempo a venderem o seu trabalho à classe dos proprietários de terras - os antigos senhores - dos quais receberiam com paga aquilo que eles houvessem por bem dar-lhes.
Bem entendido, uma vez que os novos libertos (como alguns erradamente lhes chamaram) não tinham nem terra nem qualquer propriedade ou meio de subsistência, não lhes restava outra escolha, caso não quisessem morrer de fome, senão a de venderem o seu trabalho aos proprietários de terras, recebendo como paga apenas o meio de satisfazerem as necessidades vitais mais grosseiras, ou por vezes menos do que isso.
Os novos libertos, ou assim ditos, pouco menos escravizados eram do que antes. Os seus meios de subsistência talvez fossem ainda mais precários do que outrora, quando era do interesse dos proprietários de escravos mantê-los em vida. Os ex-escravos corriam agora o risco de ser despedidos, postos fora das suas casas, privados de emprego e até da possibilidade de ganharem a vida por meio do seu trabalho, caso fosse esse o interesse ou o capricho do proprietário. Muitos deles ficavam assim reduzidos pela necessidade a mendigar ou a roubar para não morrerem de fome; o que, bem entendido, ameaçava os bens e a tranquilidade dos seus antigos senhores.
Por conseguinte, os anteriores proprietários julgaram necessário, em vista da segurança das suas pessoas e dos seus bens, aperfeiçoar de novo a sua organização enquanto governo, e fazer leis que mantivessem submissa a nova classe perigosa; por exemplo, leis fixando o preço pelo qual os seus membros seriam obrigados a trabalhar, e prescrevendo castigos terríveis, sem excluir a própria morte, para os roubos e outros delitos que aqueles fossem levados a cometer como único meio de não morrerem de fome.
Tais leis foram aplicadas durante séculos, ou, em certos países, milénios; continuam hoje a ser aplicadas, com maior ou menor severidade, em quase todos os países do mundo.

pags. 117/118
Tradução de Miguel Serras Pereira
Editor Vasco Santos