O perigo a sondar-me. Esquecido numa cidade pequena, ainda Vila, onde amanhã vou tomar posse e hoje sou forasteiro, como se fosse o último dia antes da Quaresma e tudo me fosse ainda permitido, sem constrangimentos, que amanhã era-me exigível um comportamento irrepreensível, exemplar, como de um sacerdote que abraça a vida de renúncia dos prazeres do mundo.
As meninas da janela debruçaram-se afrontosamente no parapeito, à altura da minha cara, roçavam os seios na madeira da janela, à distância de um toque, da vontade.
- «Traz tabaco e sobe».
Fizeram o gesto de me ajudar a subir pela janela. Brilhavam de lascívia inocente. Como se a inocência transportasse lascívia. O medo voltava, deixavam-me nervoso e mais insistiam. Era o meu último dia antes que de manhã passasse a ser o novo juiz da comarca. Nunca mais tomaria banho no rio. Nunca mais subiria pela janela do quarto das jovens que dançavam o samba ao som daquele estribilho,
Me dá, me dá, me dá
E da língua longa
Me dá, me dá, me dá...
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Edições Simplesmente, 2014