No DN, com o título Eu sei, o Professor José de Faria Costa, publicou um texto de leitura e reflexão obrigatórias. Para que a sua vida, a do texto, possa ser mais do que um ai, o meu modesto contributo é transcrevê-lo.
Eu sei. Sim, eu sei. E porque sei, não quero que o meu silêncio ecoe
no infinito presente da minha vida para que não possa ser apodado, no futuro
passado, de cúmplice.
Eu sei que muitas vezes não é fácil vir a terreiro defender aquilo que
deve ser defendido como se defendêssemos as "muralhas da cidade". Mas
há um tempo para tudo e não precisamos de recorrer ao Eclesiastes para
justificar a bondade do que se acaba de dizer. Eu sei que o tempo mediático
talvez já tenha passado para aquilo que brevemente irei escrever. E talvez, por
isso mesmo, o queira agora dizer, porque as coisas só ganham sentido quando a
poeira frenética da mediação informativa, levada pelo vento do tempo
instantâneo, pula para um outro acontecimento, uma outra notícia, verdadeira ou
falsa, pouco importa, para um outro dado da comunicação social (escrita,
televisiva ou radiofónica).
Eu sei que a liberdade de expressão e os direitos a informar e a ser
informado são esteios indestrutíveis de uma qualquer comunidade verdadeiramente
democrática e que, por isso, qualquer forma de censura ou limitação
desproporcionada, em meu juízo, são intoleráveis. Eu sei que há um ruído
insuportável à roda de vários casos, chamados mediáticos, que uma solerte
comunicação social considera serem protagonizados por "famosos, ricos e
poderosos" e que se alimenta, de modo preciso, da qualificação que,
justamente, faz desencadear as pulsões mais primárias dos membros de uma
qualquer comunidade de homens e mulheres historicamente situados. Este é, em
definitivo, um dado histórico indesmentível e que a mais séria psicossociologia
do estudo das massas não deixa de confirmar.
Eu sei que muitos vão dizer, como já antes o disseram, que só desta
forma se pode combater o crime, sobretudo a criminalidade altamente organizada
e muito particularmente a sofisticada criminalidade económico-financeira e,
para mais, continuarão a dizer que o esmagamento das garantias mais elementares
dos cidadãos, mesmo que inocentes, nada tem de especial: é o preço a pagar para
honrarmos a deusa "transparência", acompanhada da sua irmã
"eficiência". E alguns, mais afoitos no seu radicalismo, até dirão
que pensar o contrário mais não é do que a redundância de "luxos" que
alguma intelligentsia liberal e talvez decadente gosta de defender. Tudo tem de
ser transparente. Na vida individual. Na vida colectiva. Tudo pode e deve ser
devassado. Sem limites. A intimidade pessoal, a vida privada individual,
familiar ou social nada valem quando se quer perseguir os criminosos, quaisquer
criminosos, mesmo que só putativos criminosos, esquecendo-se ou postergando-se,
sem rebuço, a presunção de inocência até ao trânsito em julgado.
Eu sei que as coisas que têm acontecido nos últimos meses, para não
dizer anos - e que se espelham na divulgação de factos sujeitos ao segredo de
justiça ou, não o estando, na sua publicitação que é, do mesmo passo,
criminalmente punível-, se tornaram, de forma patológica, endémicas no tecido
jurídico-social português. Endemia ou pandemia que aparentemente preocupa toda
a gente mas que, efectivamente, faz que "toda a gente" nada faça.
Eu sei que tocar ou mexer neste ponto é tocar ou mexer na estrutura
político-normativa do próprio Estado, o que nos faz imediatamente duvidar de
qualquer movimento de reforma em tempos que são dominados, ferreamente, pela
ideologia e pela nomenclatura do pensamento económico-financeiro e que, ao
menor suspiro de manifestação de vontade de mudança, de supetão nos é atirado o
perverso, estúpido e diletante brocardo: "It"s the economy,
stupid." Mas o problema é que este ar malsão que respiramos não vem só da
economia. Vem de muito mais fundo. Vem de não se perceber que a administração
da justiça em nome do povo - não a justa aplicação do direito ao caso concreto
por um juiz e não por representante do Ministério Público - é sempre e
definitivamente um problema político. Uma questão que se insere no grande mundo
das políticas públicas de quem legisla e de quem governa. Neste sentido, dizer-se
"à política o que é da política e à justiça o que é da justiça" é não
só apoucar e definhar a máxima religiosa que lhe serve de parâmetro mas também,
e talvez por sobre tudo, não querer assumir as obrigações políticas que órgãos,
democraticamente eleitos, devem com orgulho, porque mandatados pelo voto, levar
a cabo.
Eu sei que uma leitura apressada ou de má-fé dirá que o que vai aqui
pressuposto é a tutela doutrinal de uma "justiça para ricos" e de uma
"justiça para pobres". Em boa-fé direi que uma tal interpretação está
nos antípodas do que sempre defendi, escrevendo e ensinando, há quase meio
século. Por imperativo ético e democrático a lei é igual para todos e a todos
por igual tem de ser aplicada, com rigor e imparcialidade. E direi mais: a
corrupção é um mal, também ele endémico, que tem de ser combatido por todos os
meios, incluindo o direito penal, na sua expressão mais firme e rigorosa. Por
isso, infelizmente, Portugal vive duas endemias em que uma alimenta a outra, em
um indissociável processo simbólico de reciprocidade.
Eu sei que a última metade do século passado foi a afirmação e tutela,
em jeito que se queria universal, dos direitos humanos, em todas as suas
dimensões e, por sobre tudo, de modo muito particular, quando lidávamos com as
"cousas" dos direitos penal e processual penal. Porém, os primeiros
anos desta centúria parecem levantar ventos securitários. E se, desde a
Ilustração, se dizia que "mais vale ter à solta um culpado do que punir um
inocente", parece que, hoje, o mais importante é punir a eito e se se não
puder fazê-lo em tribunal que aconteça, então, na praça pública. Oh! Santa
Idade Média, regozija-te, os teus lados mais negros estão perdoados. Para quê o
"processo justo"? Para quê a presunção de inocência até trânsito em
julgado? Para quê a proibição da inversão do ónus da prova em processo penal?
Para quê o princípio da legalidade da norma incriminadora? Para quê mostrar a
insanidade da delação premiada? Para quê salientar dogmaticamente o irrazoável
do querer criminalizar o chamado "enriquecimento ilícito"?
Eu sei. Eu sei que o que escrevi pouco vale para mudar o que quer que
seja, porque sei que uma crónica de jornal não tem sequer a vida de um ai e,
outrossim, menos sequer a força política de um gesto de criança. Todavia, sei
que é preciso: não navegar mas dizer.