domingo, 28 de fevereiro de 2010

O valor absoluto

Ao longo da conversa, ocorrida em 1958, pouco antes de Charles De Gaule voltar ao poder, Pierre Mendès France explicara que tinha "todas as razões de fundo para se aliar a De Gaulle" e todas "as razões de forma para lhe recusar o seu apoio". O Monde não publicou a entrevista, a fim de preservar Mendès como uma reserva da República. "A hipótese de trabalho - explica Lacouture - era esta: De Gaulle resolveria o problema da Argélia com (o direitista) Debré (como primeiro-ministro) e depois instalaria Mendès (centro-esquerda) em Matignon". Não foi isso o que veio a passar-se, mas foi em nome desse cenário que os jornalistas agiram.
Este episódio foi possível, em 1958. num jornal de referência, senhor da sua autonomia, mas convencido de que lhe cabia actuar em nome do "sua" definição de "interesse geral", embora prejudicando o seu próprio sucesso jornalístico. Cinquenta anos passados, nenhuma direcção de informação, sindicato, provedor ou conselho deontológico invocaria ou aceitaria tais argumentos para "não publicar" fosse o que fosse. A regra de oiro é o primado da informação. O risco é que -- sob a invocação do valor absoluto liberdade de imprensa -- se divulgue, se manipule ou se venda a parte pelo todo. Não é possível, nem desejável, voltar ao tempo da iluminação a gás, do cinema mudo ou da imperfeita "ideia de jornalismo de Jean Lacouture, mas, olhando às práticas que nos rodeiam, instala-se uma (in)certa nostalgia. Talvez a nostalgia da possibilidade de confiança nas pessoas e da crença no "interesse geral".


Mário Mesquita, in Jornal de Notícias

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Um país de bocas

Uma boca histriónica tornou-se numa questão de Estado. Os jornais são bocas em delírio. A RTP justifica o serviço público com as bocas do prós-e-contras. A SIC tem uma boca loura e o ego de uma boca. Na Assembleia da República, a prestação dos deputados mede-se em função das bocas regimentais. O Partido Socialista atura as bocas da deputada internacional Ana Gomes. Não deixa de ser estranho que as oposições gritem a uma só boca. Os polícias cultivam os segredos na boca e os magistrados a boca nos segredos. Não menos relevantes serão as bocas deste blogue. A Ética da Comissão dissolveu-se em bocas. Até a Presidência tremeu com as bocas de Fernando Lima. A única forma segura de nos falarmos é de boca em boca. Depois de tantas bocas inglórias, apenas nos restam as bocas das urnas.

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2010

Buscas

Não tanto como as escutas, mas a verdade é que as buscas também são um valor seguro. Qualquer busca incendeia as imaginações, facilita o verbo e enche os noticiários. Os polícias gostam de buscas e os juízes e procuradores gostam de polícias felizes. É irrelevante que a maioria das buscas seja desnecessária e que o seu fim possa ser atingido com um simples telefonema ou uma mera notificação judicial. Eu sei que para polícias e magistrados a outra metade do mundo é de gente sem sentido cívico. Mas não seria razoável um pouco mais de bom senso em práticas socialmente tão estigmatizantes?

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

CEJ

O Centro de Estudos Judiciários nasceu para ser um centro de formação de juízes e procuradores; afinal transformou-se, sem sobressaltos, num centro de reprodução de juízes e procuradores.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Enganos

Há momentos em que é preciso guardar os estatutos e fechar os códigos. Em que se torna urgente uma reflexão em que a boa-fé e a boa-vontade permitam uma avaliação moral dos procedimentos. Os magistrados formam uma casta que, do ponto de vista da opinião pública, deambula nos territórios da impunidade. Da impunidade criminal, ou disciplinar, ou social. Se de facto não é assim, a verdade é que, às vezes, o parece.
A justiça alimenta-se do seu próprio gigantismo: dos seus túneis, dos seus segredos, dos seus rituais e dos seus ridículos. Vive para si e para a ideia que de si mesmo constrói. O poder de que é depositária não é uma virtude mas um orgulho. Uma espécie de pecado venial, feito à base de normas e desvarios.
Os magistrados não dialogam: discutem. Ou impõem. Talvez por isso, o direito que se faz não seja, socialmente, perceptível. O cidadão desconfia e com razão. Não há um que seja que não tenha uma estória, sua ou alheia, em que o dislate judicial se confunde com a injustiça.
Há uns meses, a Ordem dos Advogados trouxe à baila uma Galeria dos Horrores Judiciários. Juízes e procuradores encolheram os ombros, como se nada daquilo lhes dissesse respeito. Passaram por cima, numa vocação esquizofrénica que vai de magistrado em magistrado até ao delírio corporativo.
É certo que não estavam lá todos os horrores: faltaram, pelo menos, os que eu conheço. Aqueles que, se calhar, eu nunca direi – por razões de oportunidade. Na justiça, a denúncia nunca é oportuna. Na justiça, o silêncio é uma estranha maneira de cultivar a inteligência. Ou a sobrevivência.
Falta à justiça uma ética. Falta aos magistrados um pouco mais de pudor. O que falo são generalidades, com os riscos das injustiças que daí decorrem. Sei das excepções, muitas mas isoladas. Sei dos que acreditam, ainda que de um modo envergonhado. Todavia, o tempo parece estar a contento dos outros, dos que fazem do dever de reserva uma reserva de enganos.
Escrito em Novembro de 2004

Leviandades

Todos os candidatos à liderança PSD declararam que estão contra os direitos especiais (golden share) que o Estado detém na PT. Não devem ter pensado bem na questão. Se estivessem apenas em causa a economia e as finanças, talvez fosse razoável. Mas a verdade é que a presença do Estado na PT é muito mais do que isso. Há sérias razões que se prendem com a projecção internacional do país, com a sua segurança interna e externa, que justificam tal estatuto. O Estado não é os outros, somos nós. E o nós precisa da PT.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Cidadão do futuro

Falar de Mário Sacramento é, no essencial, falar da luta contra a opressão, a ignorância, a miséria, enfim, falar da luta contra as formas fascizantes de organização sócio-económica. Esquecer este propósito é já atraiçoarmo-nos, atraiçoando a vida de quem nessa luta encontrou o significado profundo da sua vida. Foram dezenas de anos de um combate desigual em que à dádiva e à inteligência se opunham a violência e a arbitrariedade. Nunca se quedou às injustiças de que foi vítima (histórias longas por contar!), pelo contrário, era aí que a sua ironia melhor se exercitava num exemplo de preciosa disciplina mental. Como ele muitos outros, no exílio ou nas prisões, humilhados nos mais ínfimos pormenores do quotidiano, eram já o futuro do nosso presente. Morreu cedo mas «a História é um que fazer incessante, e nunca ninguém viu ou verá tudo aquilo por que se bateu ou luta, pois algo fica sempre a meio caminho.» (1)
Mário Sacramento nasceu em Ílhavo e por Aveiro se ficou no exercício da sua clínica. Conhecia o distrito como ninguém (espantem-se certos bairristas!), calcorreando-o, num empenho total de incentivo de organização, de combate. Poderia ter abandonado a geografia que lhe era natal, poderia ter diluído a sua actividade revolucionária em nome de qualquer pretexto conciliatório – não o fez. A razão daquilo porque lutava não era apenas sua, sabia-o, era, é património de milhões de homens numa fraternidade comum.
Homem de diálogo, Mário Sacramento foi pedagogo discreto mas persistente. Muitos foram os que aprenderam, na sua voz pausada e atenta, as certezas do porvir. Nunca desdenhou a palavra ao mais humilde, numa alegria de fazer crescer, em cada um de nós, a alegria adivinhada da libertação». Os católicos, os de boa-vontade, tiveram em Mário Sacramento um interlocutor sem afectação, sem mesquinhez, cujo único intuito era o de nos encontrarmos na realidade real do nosso drama. Que ninguém duvide do respeito com que os outros se lhe impunham na diversidade das suas crenças! A pedagogia era isso para Mário Sacramento – um diálogo sem fronteiras, ritmo esforçado e leal de convergência.
Em Mário Sacramento, a palavra e o gesto, a teoria e a prática, aliavam-se numa identidade absoluta, fazendo de si um símbolo de coerência sempre grato de relembrar. O seu humanismo não era um exercício de retórica, transparecia nos aspectos mais simples da sua vida. Médico de província desprendido de uma medicina de privilegiados para privilegiados, cidadão ilustre apostado no convívio com quem pouco lhe podia ensinar, escritor de «domingos e serões» torneando os silêncios vis da repressão, Mário Sacramento é já a procura esboçada de um «novo homem».
Neste caminhar para um «mundo melhor», a memória dos que nos precederam só pode ser um incentivo de lucidez e entusiasmo. Talvez por isso as palavras modestas, que poderemos alinhavar sobre Mário Sacramento, são também, afinal, um pretexto para falar de um tema que tão grato lhe foi e que mantém, hoje, uma actualidade exemplar. A defesa da unidade de todos os antifascistas, da unidade de todos os que lutam por uma sociedade mais progressiva e justa, foi uma tarefa a que se devotou, com paixão, Mário Sacramento. Sabem bem aqueles que com ele compartilharam amplas actividades antifascistas, ainda que de sectores ideológicos diferentes, que a unidade não era para Mário Sacramento, nem para os que como ele pensam, um objectivo táctico, uma manobra fácil de iludir companheiros de jornada. Ontem como hoje, as razões que fundamentam uma unidade de todas as forças progressistas continuam as mesmas. Só o imediatismo revolucionário, a estreiteza mental ou a vocação hegemónica, vícios que Mário Sacramento combateu com tenacidade, podem obstar a que prossigamos, em comum, os objectivos comuns e essenciais.
Finalizemos: Mário Sacramento foi um exemplo de persuasão revolucionária – lisura de trato, dignidade de atitudes, saber de modéstia, rigidez de dedicação. Provam-no, instante a instante, pelo exemplo, os que hoje continuam o seu testemunho.

(1) – Do discurso proferido no teatro Aveirense, em 31-1-1969


Texto publicado em Dezembro de 1975, na publicação da então Junta Distrital AVEIRO E O SEU DISTRITO

A vergonha

A vergonha também cai em cabeças luzidias. Ontem, Vitorino, o António, proclamou, entre o disfarçadamente tímido e o obviamente convencido, que é “amigo” do professor comentarista. As amizades privadas são bonitas, mas tornam-se publicamente perigosas quando caucionam “um mentiroso”. Esperava-se a indignação, ouviu-se uma lamechice. Já não é o pântano, é o/a .....* no seu esplendor.
*Para preencher à vontade do leitor

segunda-feira, 15 de fevereiro de 2010

O professor comentarista

O professor comentarista é único na retórica compulsiva, no gesto maníaco, na superficialidade temática. Represente a face visível do não direito, a morte do contraditório. Fez da política uma intriga e da intriga um projecto. Está para o comentário como o professor Herrero está para o espectáculo. É tudo uma questão de facas. Só que o professor Herrero as vai espetando em si mesmo e o professor comentarista as vai espetando nos outros. Gente assim tem sempre o poiso mediático garantido. Apesar da asfixia.

domingo, 14 de fevereiro de 2010

O dono do tempo

"Os sucessivos escândalos contra José Sócrates enfraquecem o primeiro-ministro. Obrigam a rever previsões quanto à duração do Governo. Qualquer que seja a veracidade das acusações formuladas ou o resultado de (eventuais) sentenças, caso as suspeitas venham a originar processos judiciais, o desgaste é elevado. O voluntarismo do primeiro-ministro não parece suficiente para lhe fazer frente. O calendário é conhecido: a partir de 14 de Abril e até Setembro, o Presidente da República pode dissolver a Assembleia. Decidirá fazê-lo? Para convidar o PS a indicar outro primeiro-ministro, sem a certeza de que o fará? Para convocar legislativas antes das presidenciais, com nova liderança no PSD, mas sem garantia de resultados clarificadores? O problema transfere-se, a pouco e pouco, de S. Bento para Belém."
Esta é a parte final do texto de Mário Mesquita, com o título A Caixa de Pandora da República, publicado no Jornal de Notícias. A transferência a que aqui se alude faz do Presidente da República o dono do tempo político. Não sei se o quererá assumir nas actuais circunstâncias, mas creio que, assumindo-o, Sócrates não tirará disso qualquer benefício. A questão do tempo, da sua antecipação, é crucial para a sua continuação como primeiro-ministro. Com uma legitimação que só pode ser eleitoral.

Erros que se pagam

O Procurador-Geral da República enganou-se nos amigos e escolheu mal os inimigos.

sábado, 13 de fevereiro de 2010

A crise

A crise está aí; não a da política, mas a da justiça. As eleições resolvem, ou vão resolvendo, os impasses da política. Na justiça, não há eleições; os actores têm a eternidade da jubilação à sua espera.

Eleições, já

Não é possível governar no meio de tanta patifaria e contra o silêncio do Presidente da República. Com o veredicto judiciário nas ruas da amargura, o que resta é o veredicto popular. Nas urnas, antes que ele também caia nas ruas.

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Não há liberdade de expressão, concordo

Para os que discordam do Crespo, da Moura Guedes, do marido da Moura Guedes, da Clara, da Judite, da outra Judite, do Medina, do Neto, do Correio da Manhã, do Telejornal da RTP, do Jornal da Noite da SIC, do Jornal Nacional da TVI, do Prós-e-Contras, e dos outros 1001 comentadores que cultivam a prosápia, desdenham a ética e enfardam os rendimentos. A culpa é do Sócrates, com certeza.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Dificuldades

Os tribunais sempre tiveram dificuldades em notificar bandidos e chicos-espertos.

Escutas à solta

Agora é que ninguém as vai parar. Nem hoje. Nem amanhã. Nem depois do depois. A seu tempo, todos serão/seremos vítimas.

Números inglórios

Segundo o Relatório da Procuradoria-Geral da República sobre a actividade do Ministério Público em 2008, deram entrada, nesse ano, 557884 inquéritos. Vindos dos anos anteriores, foram contabilizados 204103 inquéritos. Ou seja, as mãos do Ministério Público, em 2008, trabalharam 761987 inquéritos. Em 75796 dos ditos, foram deduzidas acusações, remetendo-os a juízo para apreciação. 9,9% de acusações não levam uma magistratura à glória, a não ser que esse número tão avantajado de inquéritos não traduza a realidade criminal do país.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Das regras

As regras, em processo penal, que orientam a obtenção dos meios de prova e da sua produção, são uma conquista civilizacional. Têm a ver com os valores e com os princípios: com a ética. Daí que da sua violação resultem consequências que estão muito para além dos tribunais. Se tais meios são inválidos na justiça, seria absurdo que pudessem ter qualquer alcance no Parlamento. Se são eticamente censuráveis na justiça, seria absurdo que pudessem ser arma de arremesso mediática. Neste âmbito, a dicotomia justiça/política, no oportunismo sórdido de alguns, será mais um factor de descredibilização da justiça e da política: da democracia.

Sem Ironia

Os nossos portugueses agentes secretos deveriam ter lido o romance de Graham Greene, Our Man in Havana, à falta de literatura pátria desta natureza. Não podem ficar apenas pelo filme, se é que o viram.

domingo, 7 de fevereiro de 2010

O conteúdo

Depois das sevícias, ficava o conteúdo. Depois das arbitrariedades processuais, ficava o conteúdo. Depois das escutas ilegais, ficava o conteúdo. Era em nome do conteúdo que se condenava. É em nome do conteúdo que continuam a cometer-se barbaridades. Numa sociedade em que os fins assumem, em bocas responsáveis, a justificação dos meios, a indignidade tornou-se na ética do conteúdo.

sábado, 6 de fevereiro de 2010

A corrupção do discurso

O discurso de João Cravinho sobre a corrupção não é intelectualmente equilibrado nem didacticamente eficaz. Vive da confusão dos conceitos, da generalização dos propósitos e da dramatização da crise. Falar de corrupção, ou de qualquer outro crime, nestes termos, é trazer à colação os fantasmas de todas as inquisições.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Acasos

Na investigação preventiva contra o terrorismo, não podemos viver de acasos com finais felizes.