terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Cidadão do futuro

Falar de Mário Sacramento é, no essencial, falar da luta contra a opressão, a ignorância, a miséria, enfim, falar da luta contra as formas fascizantes de organização sócio-económica. Esquecer este propósito é já atraiçoarmo-nos, atraiçoando a vida de quem nessa luta encontrou o significado profundo da sua vida. Foram dezenas de anos de um combate desigual em que à dádiva e à inteligência se opunham a violência e a arbitrariedade. Nunca se quedou às injustiças de que foi vítima (histórias longas por contar!), pelo contrário, era aí que a sua ironia melhor se exercitava num exemplo de preciosa disciplina mental. Como ele muitos outros, no exílio ou nas prisões, humilhados nos mais ínfimos pormenores do quotidiano, eram já o futuro do nosso presente. Morreu cedo mas «a História é um que fazer incessante, e nunca ninguém viu ou verá tudo aquilo por que se bateu ou luta, pois algo fica sempre a meio caminho.» (1)
Mário Sacramento nasceu em Ílhavo e por Aveiro se ficou no exercício da sua clínica. Conhecia o distrito como ninguém (espantem-se certos bairristas!), calcorreando-o, num empenho total de incentivo de organização, de combate. Poderia ter abandonado a geografia que lhe era natal, poderia ter diluído a sua actividade revolucionária em nome de qualquer pretexto conciliatório – não o fez. A razão daquilo porque lutava não era apenas sua, sabia-o, era, é património de milhões de homens numa fraternidade comum.
Homem de diálogo, Mário Sacramento foi pedagogo discreto mas persistente. Muitos foram os que aprenderam, na sua voz pausada e atenta, as certezas do porvir. Nunca desdenhou a palavra ao mais humilde, numa alegria de fazer crescer, em cada um de nós, a alegria adivinhada da libertação». Os católicos, os de boa-vontade, tiveram em Mário Sacramento um interlocutor sem afectação, sem mesquinhez, cujo único intuito era o de nos encontrarmos na realidade real do nosso drama. Que ninguém duvide do respeito com que os outros se lhe impunham na diversidade das suas crenças! A pedagogia era isso para Mário Sacramento – um diálogo sem fronteiras, ritmo esforçado e leal de convergência.
Em Mário Sacramento, a palavra e o gesto, a teoria e a prática, aliavam-se numa identidade absoluta, fazendo de si um símbolo de coerência sempre grato de relembrar. O seu humanismo não era um exercício de retórica, transparecia nos aspectos mais simples da sua vida. Médico de província desprendido de uma medicina de privilegiados para privilegiados, cidadão ilustre apostado no convívio com quem pouco lhe podia ensinar, escritor de «domingos e serões» torneando os silêncios vis da repressão, Mário Sacramento é já a procura esboçada de um «novo homem».
Neste caminhar para um «mundo melhor», a memória dos que nos precederam só pode ser um incentivo de lucidez e entusiasmo. Talvez por isso as palavras modestas, que poderemos alinhavar sobre Mário Sacramento, são também, afinal, um pretexto para falar de um tema que tão grato lhe foi e que mantém, hoje, uma actualidade exemplar. A defesa da unidade de todos os antifascistas, da unidade de todos os que lutam por uma sociedade mais progressiva e justa, foi uma tarefa a que se devotou, com paixão, Mário Sacramento. Sabem bem aqueles que com ele compartilharam amplas actividades antifascistas, ainda que de sectores ideológicos diferentes, que a unidade não era para Mário Sacramento, nem para os que como ele pensam, um objectivo táctico, uma manobra fácil de iludir companheiros de jornada. Ontem como hoje, as razões que fundamentam uma unidade de todas as forças progressistas continuam as mesmas. Só o imediatismo revolucionário, a estreiteza mental ou a vocação hegemónica, vícios que Mário Sacramento combateu com tenacidade, podem obstar a que prossigamos, em comum, os objectivos comuns e essenciais.
Finalizemos: Mário Sacramento foi um exemplo de persuasão revolucionária – lisura de trato, dignidade de atitudes, saber de modéstia, rigidez de dedicação. Provam-no, instante a instante, pelo exemplo, os que hoje continuam o seu testemunho.

(1) – Do discurso proferido no teatro Aveirense, em 31-1-1969


Texto publicado em Dezembro de 1975, na publicação da então Junta Distrital AVEIRO E O SEU DISTRITO