sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Enganos

Há momentos em que é preciso guardar os estatutos e fechar os códigos. Em que se torna urgente uma reflexão em que a boa-fé e a boa-vontade permitam uma avaliação moral dos procedimentos. Os magistrados formam uma casta que, do ponto de vista da opinião pública, deambula nos territórios da impunidade. Da impunidade criminal, ou disciplinar, ou social. Se de facto não é assim, a verdade é que, às vezes, o parece.
A justiça alimenta-se do seu próprio gigantismo: dos seus túneis, dos seus segredos, dos seus rituais e dos seus ridículos. Vive para si e para a ideia que de si mesmo constrói. O poder de que é depositária não é uma virtude mas um orgulho. Uma espécie de pecado venial, feito à base de normas e desvarios.
Os magistrados não dialogam: discutem. Ou impõem. Talvez por isso, o direito que se faz não seja, socialmente, perceptível. O cidadão desconfia e com razão. Não há um que seja que não tenha uma estória, sua ou alheia, em que o dislate judicial se confunde com a injustiça.
Há uns meses, a Ordem dos Advogados trouxe à baila uma Galeria dos Horrores Judiciários. Juízes e procuradores encolheram os ombros, como se nada daquilo lhes dissesse respeito. Passaram por cima, numa vocação esquizofrénica que vai de magistrado em magistrado até ao delírio corporativo.
É certo que não estavam lá todos os horrores: faltaram, pelo menos, os que eu conheço. Aqueles que, se calhar, eu nunca direi – por razões de oportunidade. Na justiça, a denúncia nunca é oportuna. Na justiça, o silêncio é uma estranha maneira de cultivar a inteligência. Ou a sobrevivência.
Falta à justiça uma ética. Falta aos magistrados um pouco mais de pudor. O que falo são generalidades, com os riscos das injustiças que daí decorrem. Sei das excepções, muitas mas isoladas. Sei dos que acreditam, ainda que de um modo envergonhado. Todavia, o tempo parece estar a contento dos outros, dos que fazem do dever de reserva uma reserva de enganos.
Escrito em Novembro de 2004