terça-feira, 21 de agosto de 2012

Solteirão e misógino

“O outro assessor, José Ramos Coelho, passava por ser o zero absoluto. Escorregadio e silencioso como o congro. Chegara à corregedoria pela insignificância, à parte a zumbaia. Pálido, seco, e de olhos gelatinosos. Solteirão e misógino. Prezava a disciplina na secretaria e a compostura na audiência. Réu que se mostrasse incivil ou cuja atitude não fosse de cortesia plena, avaliada pela maneira como se sentava, como abria a boca ou bocejava, como falava, como ria, apanhava a grossa talhada. Deus o livrasse de ser surpreendido por ele a tirar a caca do nariz. Não suportava tampouco que estalassem com os dedos; se mexessem no banco; encavalitassem perna sobre perna; fungassem. Eram-lhe intoleráveis os pequenos tiques do seu semelhante, o que constituía já balda. Em contrapartida, réu que lhe aparecesse com submissão de penitente, embora com a humildade do velhaco, só não seria absolvido se tivesse violado alguma freira ou fosse apanhado a surripiar um bolo para matar a fome. Porque se, por um lado, era um catolicão até à medula, por outro, não admitia que se fosse pelintra. A propriedade para ele, homem com uma pequena reserva nos bancos e uma quintalória em Óis, representava a primeira instituição humana, criadora e dignificadora da personalidade, frase que lera algures e invocava a cada passo.”

Aquilino Ribeiro, Quando os lobos uivam