quinta-feira, 9 de março de 2023

Leituras

 

Os grandes crimes têm o vínculo à personalidade, e assim a criminologia foi uma ciência exacta. Mas tornaram-se difusos e imprevisíveis, o que torna a acção policial menos eficiente no quadro social.
Se formos ouvir a história dos crimes que se deram na região e de que houve memória até ao nascimento de Camila, vemos que foram crimes de personalidade. O mais antigo de que alguém se podia lembrar era o conhecido pelo crime dos irmãos Pèzinho, que mataram um padre agiota com malvadez consumada. O facto é muito semelhante ao Crime e Castigo de Dostoiewski, este um perfeito crime de personalidade em que o execrável recai sobre a vítima.
Os Pèzinhos, rapazes novos e de costumes ambíguos, assassinaram o padre para o esbulhar das riquezas que recebia como penhor da sua agiotagem; declarando-se culpados, mostravam um certo auto-perdão porque consideravam ter cometido uma acção justa. Eram depressivos, de uma família de depressivos, e os netos deles, mais tarde, juravam ter visto um disco voador sobre o vale de Jugueiros, numa noite de Dezembro muito fria, A frialdade é condutora das visões fantasmas.
A ignomínia do dito padre, que acusavam de sodomia e de cupidez, atenuou muito o juízo da população e diminuiu a pena dos criminosos. Mas não se provou que a vítima fosse outra coisa senão um avarento, promíscuo apenas com as suas histórias de juros e esbulhos mais ou menos legais. O que levara os Pèzinho a matá-lo? Em primeiro lugar fora a imagem que eles tinham do sacerdote e a ideia de que aquele homem, sujo no corpo a ponto da sua autópsia ser à porta fechada em vez de decorrer no adro da igreja, como previsto, traísse alguma coisa de consistente na personalidade colectiva.
Esse mesmo crime, passados quarenta anos, teria uma motivação diferente ou não teria mesmo motivação muito clara. Há sempre um motivo para o crescimento económico duma época histórica, e é uma motivação flutuante. Também o crime tem razões que flutuam e parecem situar-se entre uma forma de idealismo e de realização impulsiva. Como o amor.

Edição de Maio de 2002
Pags 238/239