terça-feira, 23 de novembro de 2010

Testemunhas

"-Levante-se o réu!
Tem de ser e levanto-me. É o “libelo acusatório”? cheio de pistolas e facas no entrelinhado da prosa. Vai-me doendo a cabeça para ouvir. As pernas aguentam, interessadas talvez ainda na história. A certa altura houve um corrupio nos intestinos, percorrendo-me todas as circunvalações até à porta. Fechei a porta. Meu Deus. Como a tarde é difícil. Então o oficial de diligências fez-me no ombro que me sentasse. Era a vez das testemunhas. De um a um, seis tipos todos de cinzento, torvos, o olhar de cinza, chegam ao sítio onde se diz a verdade, toda a verdade. E juram, de um a um, dizer toda a verdade. Mas eu penso que devia haver outros tipos que viessem jurar que eles juravam a verdade – se não, como saber-se que dizem a verdade? E outros, naturalmente, que jurassem a jura desses. Oh, acabai com a comédia, estou tão cansado. Depois os seis vêm para a minha frente, três para cada lado. Estão parados, olham-me, o olho pardo parado. Muito frio. O juiz central bateu o martelinho de madeira:
-Podem começar!
e eles começaram. Alternadamente foram dizendo, e eu fui ouvindo."

Vergílio Ferreira, Nítido Nulo