sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Celeridades e indignação

Com a indiscrição habitual, as autoridades judiciárias procederam a buscas na Presidência do Conselho de Ministros. O secretário de Estado da Presidência declarou, invocando o prestígio das instituições, que o que esperava era "celeridade".
Milhares de cidadãos envolvidos em processos judiciais, o que reclamam, ainda que anonimamente, é celeridade: em defesa do seu bom nome ou dos seus legítimos interesses.
A relevância desta convergência é significativa; pode ser o princípio do fim do mantra à justiça o que é da justiça.

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A humilhação a que sujeitaram Duarte Lima não decorre da lei; é eticamente censurável, nada o justificando.
Subscrevo, por inteiro, o que aqui se escreveu: Autos de Fé Democráticos.

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

O estranho caso do rabino Daniel Litvak

Há uns meses, com pompa e circunstância, o rabino da comunidade judaica do Porto foi preso; após o primeiro interrogatório judicial, aplicaram-lhe pesadas medidas de coação: proibição de sair de Portugal, com a entrega dos dois passaportes de que era titular, apresentações às autoridades três vezes por semana e proibição de contactos com um outro arguido.
Agora, o tribunal da Relação de Lisboa determinou a revogação dessas medidas; o acórdão é impiedoso para o Ministério Público e, naturalmente, para a decisão judicial que aplicou aquelas medidas. Segundo o DN, a prova dos invocados "crimes de falsificação de documento, tráfico de influências, corrupção ativa, branqueamento de capitais e associação criminosa" no âmbito da concessão da nacionalidade portuguesa para descendentes de judeus sefarditas, teria assentado "numa generalização sem fundamento factual".
São sempre perigosas as investigações que tentam acompanhar as ondas mediáticas; o nome de Roman Arkadyevich Abramovich não será estranho a esta onda.

domingo, 25 de setembro de 2022

Leituras

 

O funcionário estava sentado atrás de uma barreira de madeira e era, tal como os funcionários da polícia do mundo inteiro, um grande adepto de gabinetes sobreaquecidos. Com pertencia ao serviço de estrangeiros, odiava estrangeiros. Quando Brandeis o cumprimentou com um bom-dia, disse:
- Que é que quer?
- Antes de mais, desejar-lhe um bom dia - respondeu Brandeis. - Além disso, queria também um visto de entrada e saída.
- O senhor não tem nenhuma autorização de permanência!
- Já a pedi. Ainda não está pronta.
- Então pode ir embora, mas não volte cá.
- Terei de voltar! - disse Brandeis. Sussurrou esta frase, como se fosse um segredo.
É uma característica dos funcionários públicos só olharem as pessoas depois da quarta ou quinta frase que estas dizem, como se partissem do pressuposto de que os estrangeiros têm todos o mesmo aspecto e que basta conhecer um para imaginar como serão os outros. Só depois daquela frase de Brandeis é que o funcionário levantou os olhos. Viu a figura imponente de Brandeis, o casaco pesado com o colarinho levantado. Pôs-se de pé, como que para diminuir a diferença de altura entre si e o estrangeiro. Ia para dizer alguma coisa. Brandeis começou, de repente, a falar em voz alta:
- Estou a falar com o senhor Kampe, não é? Volto daqui a a três horas. - Apontou para o relógio com a bengala. - Bom dia.
- Está a ver? - disse a Bernheim - Daqui a três horas tenho o visto. Só porque disse o nome dele, que também não era difícil de saber. Provavelmente, nunca fez nada de mal. Mas como mostrei que sabia como se chamava, tem medo de que eu saiba algo mais sobre ele. Toda a gente tem pecados.

Pag. 89

sábado, 24 de setembro de 2022

Respostas impublicadas 4

Sobre a prestação de contas pelo Ministério Público.

Houve um tempo em que a Procuradoria-Geral da República elaborava um relatório anual sobre a atividade do Ministério Público. Era uma boa prática que mereceria ter sido melhorada; assim não aconteceu. Por outro lado, os esclarecimentos públicos são cada vez mais raros, criando uma ideia, se calhar injusta, de opacidade funcional.

Em democracia, a prestação de contas é uma exigência. Sendo o campo de atividade do Ministério Público muito vasto e diversificado, sou favorável a relatórios setoriais. Esses relatórios não são só importantes para a comunidade, mas também relevam como exercícios de reflexão para a própria magistratura.

As estruturas autónomas da dimensão do Ministério Público tendem a enquistar-se, criando discursos pouco críticos e pouco criativos. No contexto presente, não será fácil normalizar essa prestação de contas e estabelecer uma estratégia que permita uma comunicação pertinente e didática.

Respostas impublicadas 3

Desconfiança no sistema de justiça.

Há um clube dos indignados por vocação; para estes, a desconfiança será a regra.

Preocupa-me, isso sim, a indignação silenciosa de cada um daqueles cidadãos que, sendo utentes da justiça, veem as decisões que os afetam ou que procuram serem proteladas para além de qualquer prazo razoável. Estarão neste caso os muitos que recorrem à justiça administrativa. Sendo nesta área que se dirimem os casos entre os cidadãos e o poder público, não deixa de ser irónica esta particular desproteção do cidadão.

Noutra vertente, preocupa-me também o silêncio indignado dos muitos que foram vítimas de investigações criminais perigosamente ousadas ou infundadas, e que tiveram a sua vida socialmente afetada. Um processo sério e eficaz também se joga nestes parâmetros.

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Respostas impublicadas 2

 Sobre os megaprocessos.

Os megaprocessos são a doença infantil da investigação criminal. Há muito que se sabe que não são eficazes nem servem a justiça. Sem dúvida, concedem protagonismos efémeros, mas não facilitam as adequadas decisões judiciais. Seria interessante fazer um levantamento desses megaprocessos que inundaram o espaço mediático nos últimos vinte anos e analisar as suas vicissitudes.

Não creio que se resolva o problema por via legislativa, mas sim pela regra imperecível do bom senso. Neste assunto, também se deveria chamar à colação a hierarquia do Ministério Público. A definição da estratégia e a ponderação dos procedimentos em investigações de expressivas repercussões não podem passar à margem dessa hierarquia, como parece ser a regra. É consabido que se deixou passar a ideia de que qualquer intervenção hierárquica teria conotação política, mas torna-se necessário que tal desconfiança sindical não se torne paralisante.

Por outro lado, não deixa de ser curioso que os megaprocessos tenham a ver com os meios técnicos, cada vez mais elaborados, postos à disposição da investigação, permitindo que esta seja realizada por arrasto. Daqui ao voyeurismo, vai um passo.

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

Respostas impublicadas 1

Sobre o eventual aumento dos prazos de prescrição do procedimento criminal no âmbito da estratégia contra a corrupção.

Quando há um insucesso na investigação, a culpa é sempre dos outros. Da falta de meios humanos ou técnicos; da tática dilatória dos advogados de defesa; da confissão que não pode ser utilizada na audiência de julgamento; ou dos polícias que atrapalham os polícias, sobrepondo-se na investigação. Muitos outros se poderiam acrescentar, sempre em função das circunstâncias.

Na circunstância atual, o outro serão os prazos de prescrição do procedimento criminal quanto aos eventuais crimes de corrupção. Presumo que muitos investigadores gostassem de não ter o incómodo dos prazos de prescrição e que muitos justiceiros gostariam que esses prazos não existissem, tornando a investigação um cutelo permanente sobre suspeitos e arguidos.

Os prazos de prescrição são genéricos e têm como referência a medida das penas que cominam, abstratamente, os crimes. Ou seja, esses prazos não se diferenciam em função dos tipos de crime. Quem investiga, conhece, ou deveria conhecer, esses prazos e desenhar a investigação tendo-os em conta.

Não tem sentido, por isso, falar no aumento do prazo de prescrição do procedimento criminal deste ou daquele crime. Por outro lado, seria irrefletido, em nome da necessidade de aumentar esse prazo, que se viesse a aumentar a pena cominada ao crime, desvirtuando o equilíbrio sancionatório global.

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

"VAI TRABALHAR, MALANDRO!"

Na revista digital setenta e quatro, com o título em epígrafe, António Pedro Dores publicou um ensaio dividido em duas partes, "Para que servem as prisões" e "As prisões em Portugal", de leitura obrigatória, já que esclarecedora, para quem se preocupa com o delírio prisional que vai da justiça aos média, não descurando o populismo político.
"Portugal é um dos países mais seguros do mundo, mas há 60 anos que a sua população prisional não para de subir. Em 1974 eram dois mil reclusos, hoje são mais de 14 mil. Os reclusos vivem como zombies entre quatro paredes, como consumidores de drogas ilícitas e/ou com psicotrópicos servidos indiscriminadamente pelo Estado".

sábado, 17 de setembro de 2022

Viva a República!

A Rainha morreu; gostava de cavalos e de cães. Como qualquer um de nós que reinasse durante décadas, teve momentos felizes, mas também infelizes; a tudo sobreviveu. Foi cumprimentada por milhares de pessoas, umas do reino, outras do mundo; gente importante, ou que se tornou importante por ter cumprimentado a rainha. Nasceu rainha, sem necessidade de o aprender a ser. A monarquia não é uma circunstância, mas um destino; sem dúvida, com relevância política, ao contrário do que se insinua. A comoção é visível, associada a uma sensação difusa de orfandade; o anacronismo das cerimónias estimula a nostalgia. Os poderosos que se irão juntar para a despedida final sentir-se-ão, ombro a ombro numa segurança recíproca, ainda mais poderosos; uma ilusão, com certeza. Na monarquia, sobre o futuro, apenas poderá dizer-se que a Deus pertence.

sexta-feira, 16 de setembro de 2022

Leituras

 

ESTRANHO CASO JUDICIAL EM INGLATERRA

Em Inglaterra, como se sabe, cada arguido tem como juízes doze jurados da sua classe, cujo veredicto tem de ser unânime, e que, para que a decisão não se arraste por demasiado tempo, ficam isolados sem comida e bebida até chegarem a um consenso. Dois gentlemen, que viviam a alguma distância de Londres, envolveram-se num aceso conflito, na presença de testemunhas; um ameaçou o outro, e acrescentou que em menos de vinte e quatro horas ele iria arrepender-se do seu comportamento. Ao fim da tarde, este fidalgo foi encontrado morto a tiro; a suspeita recaiu obviamente sobre aquele que tinha proferido as ameaças contra ele. Foi detido, levado a tribunal, descobriram ainda várias provas, e 11 jurados condenaram-no à morte; só o décimo segundo teimou em não dar o seu acordo, dizendo-se convicto da sua inocência.
Os seus colegas pediram-lhe que explicasse por que razão pensava assim; mas ele nada disse, e manteve a sua opinião. Já a noite ia longa, e a fome atormentava fortemente os jurados, quando um deles se levantou e declarou que era melhor absolver um culpado do que deixar morrer à fome 11 inocentes; e assim foi redigido o indulto, embora fazendo menção das circunstâncias que haviam forçado o tribunal a essa decisão. Toda a assistência estava contra aquele único casmurro; o caso chegou mesmo à atenção do Rei, que solicitou a sua presença; o homem compareceu, e, depois de o Rei lhe ter garantido que a sua sinceridade não lhe traria consequências prejudiciais, contou ao monarca que, ao regressar um dia da caça, no meio da escuridão, disparara a sua arma, ferindo de morte, desgraçadamente, aquele fidalgo, que se encontrava atrás de um arbusto. Ora -continuou ele- como eu não tinha testemunhas nem do meu acto, nem da minha inocência, decidi guardar silêncio; mas quando ouvi dizer que um homem inocente ia ser acusado, fiz todos os possíveis para conseguir ser um dos jurados; estava firmemente decidido antes a morrer de fome do que a deixar morrer o acusado. O Rei manteve a sua palavra, e o homem foi perdoado.

(pags. 181/182)

Serviço público


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quarta-feira, 14 de setembro de 2022

Das grandes absolvições

Em primeira instância, os onze arguidos no processo respeitante ao incêndio de Pedrógão Grande foram absolvidos. Foi um julgamento de grande relevância social e mediática e com não menor tormento sobre cada um daqueles arguidos.
Segundo o DN, a leitura do acórdão teria demorado cerca de cinco horas e meia.
No momento em que escrevo, desconheço se o Ministério Público irá interpor recurso da decisão, o que é de admitir face às alegações finais que subscreveu; pediu a condenação de nove dos arguidos.
Seria útil para a transparência judiciária e para o seu didatismo que houvesse o hábito, por parte da PGR, de dar algumas explicações sobre o desempenho do Ministério Público, pelo menos em circunstâncias como esta. Acusar, absolver ou condenar não podem ser fases de uma lotaria.

segunda-feira, 12 de setembro de 2022

Espetáculo e indignação

O Professor J.-M Nobre-Correia, num texto com o título O jornalismo num tempo de promessas e incertezas, que pode e deve ser lido aqui, escreveu:
"Na informação, o espetáculo vai ter a prioridade em relação à exposição dos aspetos fatuais do acontecimento, e a indignação será privilegiada em relação à argumentação."
Pergunto-me se o mesmo não poderia dizer-se da justiça. Das assassinas fugas de informação ao pitoresco devastador de quem cabritos vende e cabras não tem à laia de anexim probatório, o parentesco não será distante.

sábado, 10 de setembro de 2022

Há sempre uma escuta em carteira

Manuel Pizarro, indigitado ministro da Saúde, esteve sob escuta durante 270 dias. Sempre de mãos dadas, o melhor do jornalismo e o pior da justiça não perdem uma oportunidade. Sem ironia.

terça-feira, 6 de setembro de 2022

Leituras

 

A este estudo seguiram-se outros, e em todos foram encontrados níveis igualmente chocantes de ruído. Em 1977, por exemplo, William Austin e Thomas Williams realizaram um inquérito a 47 juízes, pedindo-lhes que analisassem os mesmos cinco casos, que envolviam pequenas infrações. Todas as descrições dos casos incluíam resumos das informações usadas por juízes em condenações reais, como o texto da acusação, os depoimentos, o cadastro criminal criminal anterior (se houvesse), o contexto social e elementos de prova relacionados com o caráter. A descoberta fundamental foi a existência de uma «considerável disparidade». Num caso de roubo, por exemplo, as sentenças recomendadas variaram entre cinco anos de prisão e apenas 30 dias (com multa de 100 dólares). Num caso de posse de marijuana, alguns juízes recomendaram penas de prisão efetiva; outros recomendaram pena suspensa.
...
Por muito reveladores que sejam, estes estudos, que envolvem experiências rigorosamente controladas, atenuam quase de certeza a magnitude do ruído no mundo real da justiça criminal. Na vida real, os juízes têm acesso a muito mais informações do que aquelas que são disponibilizadas aos participantes no estudo dos breves esboços com descrições cuidadosamente especificadas. Algumas destas informações adicionais são relevantes, é claro, mas também há muitos indícios de que informações irrelevantes, sob a forma de pequenos fatores aparentemente aleatórios, podem produzir grandes diferenças nos resultados. Por exemplo, os juízes consideraram que era mais provável concederem a liberdade condicional no início de um dia de trabalho ou após uma pausa para comer do que imediatamente antes dessa pausa. Se tiverem fome, os juízes são mais duros.
Um estudo que teve como objeto milhares de decisões do tribunal de menores concluiu que, quando a equipa de futebol local perde um jogo ao fim de semana, os juízes tomam decisões mais duras à segunda-feira (e, em menor escala, durante o resto da semana). Os arguidos negros sofrem as consequências desse aumento de dureza de forma desproporcionada. Um estudo diferente analisou 1,5 milhões de decisões judiciais ao longo de três décadas e também concluiu que os juízes são mais severos nos dias que se seguem a uma derrota da equipa de futebol local, e não tão severos nos dias a seguir a uma vitória.
...
Até um pormenor tão irrelevante como as condições climatéricas pode influenciar os juízes. Analisadas 207 mil decisões judiciais tomadas ao longo de quatro anos referentes a casos de imigração, foi encontrado um efeito importante nas variações diárias de temperatura: quando está calor lá fora, é menos provável que os requerentes consigam asilo. Se lhe moverem perseguição política no país onde nasceu e quiser pedir asilo noutro país, reze para que a sua audiência decorra num dia frio.

(Pags. 26/28)

quinta-feira, 1 de setembro de 2022

A ler

"... a seleção baseada no mérito não superou a seleção baseada nos legados e heranças sociais, como demonstrado nos estudos sobre as origens sociais dos estudantes do Ensino Superior."