terça-feira, 19 de março de 2019

Leituras

Qualquer que fosse o trauma da infância em Kafka dele resultou uma surpreendente colheita de interpretações e de riscos. Por exemplo, o tema da justiça, tão elaborado no romance O Processo. É evidente que a casta dos legisladores, presente no discurso bíblico dos seus antepassados, encontrou em Kafka uma espécie de blasfemador genial. Transmissor dum preconceito profissional, o legista, e até o profeta que é o seu duplo metafísico, aparece como um técnico das relações humanas; deixa porém de lado o caminho do comportamento que tem duplo sentido - o da razão e o do inconsciente, razão extremamente rica de conhecimentos que a lei não alcança. Conhecedor da dificuldade em pôr ordem nesse duplo sentido de duas razões, o legislador entrega-se à redacção das normas, furtando-se ao espaço da justiça que, de facto, permanece inabitado. Foi a habitabilidade da justiça que Kafka pretendeu introduzir na educação insegura do seu tempo que, repito, é o nosso também. A insegurança, tão manifesta nos nossos dias e que resulta da fácil propagação dos conflitos mundiais e do irreversível adiantamento da técnica em todos os sectores da vida humana, foi o que Kafka pretendeu expressar com a indecisão. Traço hereditário no seu aspecto espiritual, a indecisão permite um certo resguardo da personalidade face aos múltiplos processos de obediência que são impostos ao homem. A figura do pai, que correspondia ao anátema da indecisão e que cortava com as dúvidas, é já analisado como anacronismo. Uma sociedade fraternal desenha-se no destino das massas e, nela, a indecisão fica decerto muito subestimada pelo que se pode chamar o impulso de produção, novo elemento básico na sociedade moderna.

(Pags. 65/66)