O artigo 401º, nº 1, alínea a), do actual Código de Processo
Penal, estabelece que o Ministério Público tem legitimidade para recorrer de
quaisquer decisões, ainda que no exclusivo interesse do arguido.
Não se trata de uma disposição inovadora.
O Código de Processo Penal de 1929, no seu artigo 647º, 1º,
dizia o mesmo, ainda que com a diferença ligeira de se reportar ao exclusivo
interesse da defesa.
Em ambas as disposições, o poder concedido ao Ministério Público
em matéria de recursos penais é o mais amplo possível.
É natural que o seja, já que concedido a uma magistratura que se
deve reger por opções de estrita legalidade.
Funcionará como uma válvula de segurança do sistema, permitindo
que, para além do imediatismo dos interesses em causa, razões de harmonia e
concertação judiciária possam ser levados à consideração de uma outra
instância.
Mas o que fazer com tal poder? Como o exercer com ponderação e
eficácia?
No antigamente, nesses anos de desconfianças, o próprio Código,
e outra legislação, impunham ao Ministério Público que, em certas
circunstâncias e relativamente a certos crimes, interpusesse recursos.
Eram os recursos obrigatórios, área especialmente visada na
avaliação funcional dos magistrados de então.
Assim, o Ministério Público tinha a obrigação de recorrer –
Das decisões que não declarassem o impedimento do juiz, nos
casos em que o mesmo lhe tivesse sido oposto (§§ 1ºs dos artigos 647º e 110º);
Das sentenças finais nos processos em que o juiz, agente do
Ministério Público ou escrivão fossem ofendidos, por actos cometidos na sua
presença e no exercício das suas funções, ou fora delas, mas por causa das
mesmas (artigos 647º, § 1º e 116º);
Das decisões que aplicassem penas maiores fixas (§§ 1º do artigo
647º, único do artigo 473 e artigo 526º);
Das decisões proferidas contra a jurisprudência fixada pelo
Supremo Tribunal de Justiça, em tribunal pleno (artigos 647º, § 1º e 670º);
Sempre que o superior hierárquico lho ordenasse, mesmo que se
houvesse conformado com a decisão (§ 2º do artigo 647º);
Das decisões proferidas contra o Estado, sempre que não houvesse
ordem superior, escrita, em contrário (artigo 230º, nº 1, alínea f), do
Estatuto Judiciário);
Das decisões absolutórias em processo de transgressão por
abertura de poços dos concelhos de Lisboa, Oeiras, Cascais, Sintra e Loures
(artigo 12º do Decreto-Lei nº 30448, de 18 de Maio de 1940).
Mas entendia-se, então, que não chegavam estas imposições que
resultavam da lei.
Por via hierárquica, para além da possibilidade, como vimos, de
ser ordenada a interposição de recurso em cada caso individualmente
considerado, estabeleceram-se, de uma forma genérica, recursos obrigatórios.
Estar-se-ia, aqui, perante uma forma de direcção institucional
em que se privilegiaria a conjuntura.
Por exemplo:
Das decisões absolutórias em processos por exercício da
indústria de agentes de emigração ou de passagens e passaportes sem a
necessária autorização (imposição de 1923);
Das decisões absolutórias proferidas nos processos por crimes de
emigração clandestina, designadamente de aliciação, engajamento ou colaboração
na obtenção de documentos -contratos de trabalho, cartas de chamada ou
equivalentes- para emigração (imposição de 1959);
Das decisões que não aceitassem a definição de açaimo exposta
nas Instruções da Direcção-Geral dos Serviços Pecuários para a execução do
Decreto-Lei nº 29441 (imposição de 1940).
Para além destes recursos de interposição obrigatória, por força
da lei ou de determinação hierárquica, a hierarquia definia algumas situações
em que aconselhava a interposição de recursos.
Era aconselhada a interposição de recurso:
Sempre que estivesse em causa o prestígio da autoridade
(despacho do Procurador-Geral da República de 14 de Fevereiro de 1949);
Das sentenças proferidas em processo correccional pelo juiz
substituto (Circular de 9 de Março de 1935);
Sempre que se discutisse a necessidade de licença para a
realização de quaisquer obras ou trabalhos a que se referia o artigo 282º do
Regulamento dos Serviços Hidráulicos, de 19 de Dezembro de 1892 (Circular de 26
de Fevereiro de 1948);
Nos processos pelo uso e detenção de armas proibidas quando se
declarasse que a competência para elas não pertencia aos tribunais comuns
(Circular de 23 de Julho de 1949).
Não tenho elementos que me permitam falar sobre o modo como esse
aconselhamento se repercutiria na actividade dos magistrados.
Mas face à expressividade da hierarquia então existente, aliás
adequada ao contexto político da época, será legítimo admitir que tivesse sido
interposto um número significativo de recursos em resultado dessas orientações.
Justificando esta solução legislativa, nomeadamente a dos
recursos obrigatórios, escrevia, em 1934, Luís Osório:
“O Ministério Público não
é propriamente um acusador, mas um representante da sociedade que tem interesse
em que a justiça seja feita, e fazer justiça pode ser absolver ou baixar a
pena. Assim, o recurso pode ser interposto a favor do réu, o Ministério Público
deve recorrer de certas decisões em que é preciso um exame mais cuidadoso do
processo; o ter-se conformado com a decisão não o impede de recorrer.”
É curioso anotar esta associação entre a obrigatoriedade do
recurso e a necessidade de uma análise mais cuidada de certas matérias, o que
nos levaria para considerações que estão fora do propósito deste texto.
O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Março de 1957,
estabeleceu que aos recursos interpostos por dever de ofício (§ 1º do artigo
647º e § único do artigo 473º do Código de Processo Penal) não era aplicável o
disposto no artigo 690º do Código de Processo Civil, ou seja, interposto o
recurso obrigatório, o Ministério Público não estava obrigado a apresentar
alegações (Bol., 63-383), aliás na sequência de um outro acórdão do mesmo
Tribunal, de 21 de Novembro de 1941 (Revista
de Legislação, ano 74º, pág. 381, e ano 73º, pág. 296).
Sustentava-se que, sendo o recurso interposto por imperativo da
lei e não por discordância com o decidido, nunca seria possível exigir ao
recorrente invocar razões para a alteração da decisão em recurso.
Os tempos mudaram.
Exceptuando o disposto no artigo 3º, nº 1, alínea o), do
Estatuto do Ministério Público, que estabelece que deve ser interposto recurso
“sempre que a decisão seja efeito de concluio das partes no sentido de fraudar
a lei ou tenha sido proferida com violação de lei expressa”, e o disposto no
artigo 446º, nº 1, do Código de Processo Penal, que estatui que “o Ministério
Público recorre obrigatoriamente de quaisquer decisões proferidas contra
jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, sendo o recurso sempre
admissível”, a lei não determina a obrigatoriedade de outros recursos.
Seria interessante analisar, em outro momento, em que medida a
autonomia do Ministério Público não se compagina com essa obrigatoriedade legal
ou com um seu possível alargamento.
Por outro lado, também não existem determinações hierárquicas
que, de um modo genérico, imponham a interposição de recursos.
Nem por aconselhamento foram dadas orientações ou suscitadas
interrogações.
Escreveu, o outra vez citado Luís Osório, que “o Ministério Público é a parte que maior
poder de recurso tem.”
Um poder assim coloca sérias questões relativamente ao seu
exercício, ou melhor, à gestão do seu exercício.
Num estado de abandono legal e hierárquico, cabe a cada
magistrado o risco da dispersão funcional nesta matéria.
Uma política criminal, e tanto se tem falado dela, passa,
necessariamente, por uma prévia definição de algumas linhas sobre as situações
em que o Ministério Público deveria ter uma particular atenção para o recurso
penal.
Apesar desse poder, os elementos estatísticos
disponibilizados apontam para um exercício relativamente mitigado.
Nota: de 2005