domingo, 12 de janeiro de 2014

Um Ministério Público recorrente

Os recursos são remédios. Umas vezes, eficazes; outras, nem por isso. Se a justiça fosse uma aritmética, uma prova dos nove seria suficiente para aquilatar da bondade das decisões. Mas a justiça é um discurso, muitas vezes redundante, que precisa de outros discursos, também eles muitas vezes redundantes, que credibilizem os primeiros. Se me permitem uma ideia da justiça próxima daquela que poderia ter um tal Josef K., ouso dizer, ainda que o não deva sustentar, que o trânsito em julgado de qualquer decisão traduz a natureza da humanidade que somos: incerta e efémera. Nessa ideia, ou melhor, nesse sentido que estará entre a ética e a estética, a justiça seria um recurso em contínuo em busca, não de um tempo perdido, mas de uma verdade impossivelmente definitiva. Muitos dos equívocos, aparentes ou reais, que a justiça gera, resultam do esquecimento da sua natureza: ela é prosaica e terrena. O que nos vão vendendo é a ilusão de uma justiça fantasiada de absolutos e de alguns absurdos. É aí que se inscreve a banalização dos recursos, dos recursos terrenos, tema ou temor que hoje aqui nos traz.
Daqui a muitos anos, quando for outro o paradigma judiciário, o historiador desse tempo não deixará de ficar surpreendido com a extensão das atribuições do Ministério Público na área dos recursos, nomeadamente na área dos recursos penais. E se se ficar pela letra da lei, pelo seu conteúdo e pelo seu propósito, não deixará de escrever que o legislador desse passado já longínquo teria feito do Ministério Público um recorrente compulsivo. Mas se avançar na análise histórica, na análise dos números e dos casos, o historiador concluirá, com certeza novamente surpreendido, que o Ministério Público foi, apesar da lei, um tímido e discreto recorrente. Um recorrente que teria utilizado, sem audácia e sem estratégia, essa legitimidade, quem sabe se excessiva, para recorrer disto e daquilo, aqui e acolá. Provavelmente, o meio mais eficaz para paralisar as instituições, e continuo ainda a dar voz ao meu imaginado historiador, será enriquecê-las com competências que, parecendo dádivas, apenas robustecem as inércias. 

 *Em 2005, palestrante