terça-feira, 14 de janeiro de 2014

Um Ministério Público recorrente (4)


Os recursos são garantias com dimensão constitucional.
O Ministério Público não pode entender a redução dessas garantias em nome de uma pretensa eficácia da justiça ou por causa de uma discutível inflação recursória.
É preciso não esquecer que é a própria volatilidade da jurisprudência que induz, significativamente, os recursos.
Não sendo o Ministério Público um contribuinte estimável dessa pretensa inflação, a verdade é que, como recorrido, tem um trabalho acrescido.
Também aqui temos os números, que são muitos, mas não temos os conteúdos.
Não se tenha medo, porém, de esclarecer que em muitas das respostas (quantas?) o Ministério Público limita-se a aderir à bondade da decisão recorrida.
A monitorização das intervenções do Ministério Público em sede de recursos é uma exigência.
Sem ela, não teremos a percepção do que se faz e daquilo que seria de fazer.
 
 
Abordando a carta temática dos recursos, dir-se-á que é natural que, em 1997, 25% dos recursos interpostos para os tribunais da Relação dissessem respeito a crimes de emissão de cheques sem cobertura, e que 12% desses recursos dissessem respeito a crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, e que, em 2003, 12% dos recursos dissessem respeito a crimes de condução de veículo em estado de embriaguez e 3% a crimes de cheque sem cobertura.
É também natural que, de 1997 a 2003, sistematicamente, cerca dos 30% dos recursos interpostos para o Supremo Tribunal de Justiça fossem respeitantes a crimes de tráfico de estupefacientes.
Estas percentagens, e a sua evolução, condizem com as percentagens respeitantes aos tipos de crimes constantes das acusações deduzidas pelo Ministério Público nestes períodos e às percentagens de arguidos condenados, em 1ª instância, em penas significativas de prisão.
Não há, nessa vertente, nada de anormal.
O que seria interessante conhecer, independentemente dos crimes em causa, seriam as razões substanciais ou adjectivas dos recursos.
Os diversos relatórios anuais do Ministério Público nada esclarecem sobre esta matéria.
E não há outras abordagens sedimentadas destas questões.
Talvez no futuro, possam vir a ser criados novos parâmetros de avaliação, parâmetros que não sejam apenas numéricos, mas que nos permitam também divagar sobre a alma dos recursos.
Seria uma área em que a colaboração com as diversas Faculdades de Direito ajudaria a que a justiça repensasse alguns dos seus problemas e também alguns dos seus fantasmas.
 
 
Em 1998, num texto intitulado “O princípio da igualdade, a medida da pena e o Ministério Público”, o Dr. Simas Santos escrevia que “um dos princípios fundamentais do direito penal é o da igualdade nas decisões de justiça e o problema conexo das disparidades na aplicação das penas que tem preocupado juristas e filósofos do direito em quase todas as sociedades democrática.”
Em 2004, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, em artigo do mesmo autor e do Professor Manuel Matos, sobe a “Medida Concreta da Pena, no Supremo Tribunal de Justiça, no Tráfico de Estupefacientes”, foi escrito que “... a posição que o Ministério Público assume quanto à pena concreta é um importante preditor da sentença, as suas recomendações relevam, em geral, no resultado final. Dada a sua estrutura organizacional, o Ministério Público está em boas condições para contribuir para a disseminação de recomendações que vierem a ser elaboradas.”
A coerência na aplicação das penas tem sido uma preocupação constante em várias instâncias internacionais, sendo repetidas as orientações para que a igualdade se cumpra.
Não poderá omitir-se que no processo decisório convergem, não poucas vezes, factores exteriores que afectam essa igualdade.
As mensagens passadas pela comunicação social, a atitude do público, o contexto social local, são elementos que podem ponderar na fixação da pena.
Também factores interiores ao próprio decisor não serão despiciendos em tal ponderação.
Creio que será nesta área que o Ministério Público precisa de estruturar uma sólida estratégia de actuação no âmbito dos recursos.
A segurança e a credibilidade da justiça passam por um tratamento idêntico para idênticas situações.
Diz-nos o conhecimento do dia-a-dia judiciário que a desigualdade das penas e das medidas concretamente aplicadas é uma realidade da qual nos apercebemos com facilidade.
A aplicação da medida de inibição de conduzir é um dos exemplos mais flagrante que neste momento se poderia dar.
A amplitude das molduras penais, possibilitando a adequação da pena em conformidade com os diversos elementos que importam à sua concretização, traduz um enriquecimento na administração da justiça, mas não pode tornar-se num veículo de desigualdades.
A concretização da pena não é, nem pode ser, um exercício de subjectividades.
Naquilo que ao Ministério Público cabe como defensor da legalidade, o que também quer dizer como defensor da igualdade, a tal ampla legitimidade em matéria de recurso deverá ser um importante instrumento de igualização do arguido perante a pena.
Tendo os meios, é pena que se possam perder as oportunidades.
 
Dissertei aqui, modestamente, claro, enquanto magistrado do Ministério Público.
Gostaria de terminar falando enquanto cidadão.
Valerá a pena recorrer?
O cidadão responde com certeza que sim.
É esta evidência que todas as análises, todos os discursos e todos os propósitos legislativos deverão ter em conta.
 
 
 
Nota: ao falar-se nos recursos obrigatórios omitiu-se, deliberadamente, qualquer referência aos recursos para o Tribunal Constitucional.