Os recursos são garantias com dimensão constitucional.
O Ministério Público não pode entender a redução dessas
garantias em nome de uma pretensa eficácia da justiça ou por causa de uma
discutível inflação recursória.
É preciso não esquecer que é a própria volatilidade da
jurisprudência que induz, significativamente, os recursos.
Não sendo o Ministério Público um contribuinte estimável dessa
pretensa inflação, a verdade é que, como recorrido, tem um trabalho acrescido.
Também aqui temos os números, que são muitos, mas não temos os
conteúdos.
Não se tenha medo, porém, de esclarecer que em muitas das
respostas (quantas?) o Ministério Público limita-se a aderir à bondade da
decisão recorrida.
A monitorização das intervenções do Ministério Público em
sede de recursos é uma exigência.
Sem ela, não teremos a percepção do que se faz e daquilo que
seria de fazer.
Abordando a carta temática dos recursos, dir-se-á que é natural
que, em 1997, 25% dos recursos interpostos para os tribunais da Relação
dissessem respeito a crimes de emissão de cheques sem cobertura, e que 12%
desses recursos dissessem respeito a crimes de condução de veículo em estado de
embriaguez, e que, em 2003, 12% dos recursos dissessem respeito a crimes
de condução de veículo em estado de embriaguez e 3% a crimes de cheque
sem cobertura.
É também natural que, de 1997 a 2003, sistematicamente, cerca
dos 30% dos recursos interpostos para o Supremo Tribunal de Justiça
fossem respeitantes a crimes de tráfico de estupefacientes.
Estas percentagens, e a sua evolução, condizem com as
percentagens respeitantes aos tipos de crimes constantes das acusações
deduzidas pelo Ministério Público nestes períodos e às percentagens de arguidos
condenados, em 1ª instância, em penas significativas de prisão.
Não há, nessa vertente, nada de anormal.
O que seria interessante conhecer, independentemente dos crimes
em causa, seriam as razões substanciais ou adjectivas dos recursos.
Os diversos relatórios anuais do Ministério Público nada
esclarecem sobre esta matéria.
E não há outras abordagens sedimentadas destas questões.
Talvez no futuro, possam vir a ser criados novos parâmetros de
avaliação, parâmetros que não sejam apenas numéricos, mas que nos permitam
também divagar sobre a alma dos recursos.
Seria uma área em que a colaboração com as diversas Faculdades
de Direito ajudaria a que a justiça repensasse alguns dos seus problemas e
também alguns dos seus fantasmas.
Em 1998, num texto intitulado “O princípio da igualdade, a
medida da pena e o Ministério Público”, o Dr. Simas Santos escrevia que “um dos
princípios fundamentais do direito penal é o da igualdade nas decisões de
justiça e o problema conexo das disparidades na aplicação das penas que tem
preocupado juristas e filósofos do direito em quase todas as sociedades
democrática.”
Em 2004, na Revista Portuguesa de Ciência Criminal, em artigo do
mesmo autor e do Professor Manuel Matos, sobe a “Medida Concreta da Pena, no
Supremo Tribunal de Justiça, no Tráfico de Estupefacientes”, foi escrito que
“... a posição que o Ministério Público assume quanto à pena concreta é um
importante preditor da sentença, as suas recomendações relevam, em geral, no
resultado final. Dada a sua estrutura organizacional, o Ministério Público está
em boas condições para contribuir para a disseminação de recomendações que
vierem a ser elaboradas.”
A coerência na aplicação das penas tem sido uma preocupação
constante em várias instâncias internacionais, sendo repetidas as orientações
para que a igualdade se cumpra.
Não poderá omitir-se que no processo decisório convergem, não
poucas vezes, factores exteriores que afectam essa igualdade.
As mensagens passadas pela comunicação social, a atitude do
público, o contexto social local, são elementos que podem ponderar na fixação
da pena.
Também factores interiores ao próprio decisor não serão
despiciendos em tal ponderação.
Creio que será nesta área que o Ministério Público precisa de
estruturar uma sólida estratégia de actuação no âmbito dos recursos.
A segurança e a credibilidade da justiça passam por um
tratamento idêntico para idênticas situações.
Diz-nos o conhecimento do dia-a-dia judiciário que a
desigualdade das penas e das medidas concretamente aplicadas é uma realidade da
qual nos apercebemos com facilidade.
A aplicação da medida de inibição de conduzir é um dos exemplos
mais flagrante que neste momento se poderia dar.
A amplitude das molduras penais, possibilitando a adequação da
pena em conformidade com os diversos elementos que importam à sua
concretização, traduz um enriquecimento na administração da justiça, mas não
pode tornar-se num veículo de desigualdades.
A concretização da pena não é, nem pode ser, um exercício de
subjectividades.
Naquilo que ao Ministério Público cabe como defensor da
legalidade, o que também quer dizer como defensor da igualdade, a tal ampla
legitimidade em matéria de recurso deverá ser um importante instrumento de igualização
do arguido perante a pena.
Tendo os meios, é pena que se possam perder as
oportunidades.
Dissertei aqui, modestamente, claro, enquanto magistrado do
Ministério Público.
Gostaria de terminar falando enquanto cidadão.
Valerá a pena recorrer?
O cidadão responde com certeza que sim.
É esta evidência que todas as análises, todos os discursos e
todos os propósitos legislativos deverão ter em conta.
Nota: ao
falar-se nos recursos obrigatórios omitiu-se, deliberadamente, qualquer
referência aos recursos para o Tribunal Constitucional.