segunda-feira, 27 de maio de 2013

Leituras


Voltou-se para o escriba:
- Escreva. «Perguntado donde conhecia o Dr. Gonçalves Lopes, o réu declarou que estando uma vez no Café Suíço se viu …» etc, etc.
Depois de exaradas as declarações anteriores, com um dedo no ar fez sinal ao escriba que haveria uma suspensão e volveu, fitando-me:
- Confessou ao chefe Ferreira, e o mesmo dizem os apontamentos que me transmitiu o meu predecessor, que era anarquista?
Tinha decorrido um ror de dias, tempo mais que suficiente para os republicanos acautelarem os depósitos de armas e granadas e os componentes dos grupos, mais em risco, desaparecerem da circulação até ver onde paravam as modas. Por isso respondi despachadamente:
- Não senhor.
- Não senhor? Nega que tivesse feito tal declaração?
- Se V. Ex.ª me dá licença, vamos por partes. Tanto o meritíssimo Sr. Dr. Juiz Veiga como o digníssimo chefe Ferreira me perguntaram se sabia qual era a cor política do Dr. Lopes. Eu encolhi os ombros, em sinal de ignorância. «- Anarquista?» - acrescentou o mesmo meritíssimo Sr. Dr. Juiz Veiga. E eu respondi: - «Talvez». No propósito evidente de querer explorar a minha confissão, tornou o meritíssimo Sr. Dr. Juiz Veiga: «- E o senhor também é?».
Respondi-lhe que tendo em vista os princípios de igualdade e liberdade que parecem ser a base de semelhante sistema, todos nós, com certa cultura e professando a verdadeira moral cristã, não podíamos deixar de ser anarquistas. Não era Cristo um anarquista? Se daí fora levado a inferir que eu era um praticante anarquista, ou mesmo adepto de semelhante ideal, foi abuso de interpretação.
- Suponhamos. Mas nesse caso para que eram as bombas?
- Não sei.
- Com que intenção acolheu os caixotes cheios de material explosivo em sua casa?
- Com a intenção de servir um amigo.
- Apenas?
- Para mim era quanto bastava.

 (pags. 218/219)