Em tempo de crise e de tentações justicialistas, vale a pena reler um texto, publicado em 2004 pela Comissão Nacional Justiça e Paz, sobre a prisão preventiva. Ainda que reconhecendo que as medidas de controlo eletrónico têm vindo a modificar, paulatinamente, o seu enquadramento, as considerações aí feitas continuam a ser pertinentes.
“Uma outra questão que vem sendo repetidamente levantada a respeito da situação das nossas prisões tem a ver com a proporção excessiva dos presos preventivos (ronda os trinta por cento) no conjunto global da população prisional.
Também quanto a este aspeto, uma prática arreigada parece afastar-se dos princípios constitucionais e legais, neste caso os da presunção de inocência do arguido e da excecionalidade da prisão preventiva. Uma vez que se presume a inocência do arguido até à sua condenação por sentença transitada em julgado, seria de esperar que fosse mais habitual, mesmo em relação a crimes graves, que o mesmo aguardasse o julgamento em liberdade para, só depois do trânsito em julgado dessa condenação, cumprir a pena de prisão em que tenha sido condenado. Na grande maioria dos casos não é, porém, assim: quem é condenado em pena de prisão já aguardava o julgamento na situação de prisão preventiva.
Quem aguarda o julgamento na situação de prisão preventiva é com frequência (cerca de um quinto dos casos) condenado em pena de prisão suspensa na sua execução. Mais grave do que isso (que até poderá ser compreensível nalgumas situações) é que venha a ser absolvido quem aguarda o julgamento em prisão preventiva, o que tem ocorrido com uma frequência menor (em percentagens próximas dos cinco por cento), mas mesmo assim superior ao que seria aceitável, pela flagrante injustiça que representa.
Há que considerar ainda que o recluso em prisão preventiva sob vários aspetos está numa situação pior do que os condenados, não beneficiando, como estes, de saídas precárias ou todo o tipo de medidas tendentes à sua reinserção social. E com frequência uma parte significativa da pena é cumprida em regime de prisão preventiva.
Também quanto a este aspeto, há uma mentalidade corrente na opinião pública que não se coaduna com os princípios constitucionais e legais. Essa mentalidade faz associar automaticamente os crimes mais graves à prisão preventiva, quando os pressupostos desta não dependem diretamente da gravidade do crime indiciado, mas da existência de perigos de fuga, de perturbação da investigação e da prova, de continuação da atividade criminosa e de perturbação da ordem e tranquilidade públicas (artigo 204º do Código de Processo Penal). É corrente, por exemplo, a indignação no caso de libertação judicial (por não aplicação da prisão preventiva) de arguidos indiciados pela prática de crimes graves, como se isso representasse uma frustração da ação policial ou um sinal de impunidade (que não é, pois o arguido poderá obviamente vir a ser condenado, na altura própria, em pena de prisão). Os próprios magistrados não se conseguem libertar desta mentalidade, ou, por causa dela, temem não ser compreendidos pela opinião pública.
Justifica-se, pois, um esforço pedagógico junto da opinião pública que leve à compreensão da função da prisão preventiva e do relevo do princípio da presunção de inocência do arguido, assim como das garantias de defesa deste antes da sua condenação definitiva.»