quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

Discursata*



Ex.mo Sr. Procurador-Geral da República
Ex.mo Sr. Vice-Procurador-Geral da República
Caros Colegas
Minhas Senhoras e Meus Senhores

De Fevereiro de 1973 a Outubro de 2008, que é o meu tempo de vida nestas andanças, tenho vivido o Ministério Público como uma causa de obediência à lei em nome dos interesses legítimos, sociais e individuais, dos cidadãos.
Se é verdade que a lei tem mudado, e é natural que isso aconteça, não é menos verdade que a realidade que subjaz à actuação do Ministério Público tem também sofrido significativas transformações.
Curiosamente, ou talvez não, o Ministério Público, na sua essência organizativa e na sua estratégia funcional, tem mantido um mesmo perfil, sobretudo de magistratura reactiva.
As exigências que hoje são feitas ao Ministério Público não são compatíveis com esse perfil.
Sob um contínuo escrutínio dos cidadãos, com um tempo judiciário cada vez mais próximo do tempo quotidiano, o que importa é encontrar as dinâmicas que possibilitem respostas adequadas e socialmente perceptíveis.
Tanto quanto uma magistratura das leis, devemos ser uma magistratura dos factos.
Tendo a direcção do inquérito e a promoção criminal no cerne da sua vocação, o Ministério Público precisa de valorizar esse trabalho, integrando nele magistrados mais experientes e qualificados.
É nos Departamentos de Investigação e Acção Penal, é nos Tribunais de Primeira Instância , que o Ministério Público tem o principal embate, talvez o definitivo, que conduz a uma justiça mais pronta e mais eficaz.
A coesão destas estruturas, geograficamente dispersas e sem guias que tornem homogéneos os procedimentos, é precária, traduzindo, muitas vezes, uma sensação de incerteza na aplicação do direito e de incompreensão na percepção dos factos.
Neste contexto, penso que é urgente para o Ministério Público a revisão do seu próprio estatuto e que é por aí que passa o seu futuro.
Não creio, e digo-o convictamente, que a culpa seja dos outros, que a culpa seja dos códigos e das leis ou das suas revisões mais ou menos compulsivas.
O reforço dos poderes de orientação e gestão do procurador-geral da República, permitindo-lhe criar mecanismos que sejam, a um tempo, de controlo, de responsabilização e de estímulo, torna-se imperioso.
Como se torna imperioso uma progressão na carreira que não seja vertical, afastando os mais experientes e competentes de uma realidade criminal cada vez mais difusa, imperceptível e danosa.
Uma realidade criminal que nos escapa, para a qual não temos resposta, talvez não tanto pela falta de meios, mas pela falta de propósitos.
Não podemos tornar a corrupção, e todos os crimes a ela associados, ou o terrorismo, ou o tráfico de pessoas, retóricas que se esgotam no seu próprio discurso.
São fenómenos complexos, que estão para além do acaso de cada caso, e que não serão alheios, por exemplo, à crise financeira global que vivemos.
São fenómenos que exigem informação, análise e iniciativa.
São fenómenos que exigem a coordenação das diversas estruturas que os regulam, previnem e investigam.
A compartimentação da regulação, da prevenção e da investigação tem sido, continua a ser, absolutamente irresponsável, não permitindo a actuação global que é exigida.
A resposta a estas inquietações passa por um Ministério Público mais coeso e com maior sentido de iniciativa e de direcção.

Ex. Sr. Procurador-Geral da República

Sou um militante do Ministério Público com as quotas em dia.
Permiti-me fazer as anteriores considerações neste acto, por isso mesmo.
A boa reflexão é sempre uma reflexão em voz alta, uma reflexão partilhada, uma reflexão sem medo.
Pensar é o acto mais violento que há, escreveu Agustina Bessa-Luís.
Mas não será razão para nos remetermos ao silêncio das conveniências.
O que posso prometer a V. Ex. é lealdade, é solidariedade, é responsabilidade, é sentido crítico.
O que posso prometer ao Ministério Pública é empenho.
O serviço de inspecções do Ministério Público tem tido uma matriz redutora: a da avaliação funcional dos magistrados que ocupam os dois primeiros patamares da hierarquia.
É pouco para avaliar o trabalho integrado do Ministério Público.
É pouco para fornecer ao procurador-geral da República uma visão exaustiva do desempenho de uma magistratura tão complexa que se ocupa, por ano, com centenas de milhares de situações.
Não só a avaliação das condições mas também a avaliação dos métodos, das opções, do relacionamento com o exterior, devem estar no horizonte das tarefas dos serviços de inspecção.
Vivemos um momento de transição sem podermos ter muitas certezas sobre o modo e o modelo do Ministério Público de amanhã.
Mas espero bem que sejam o melhor que soubermos fazer dele.
Não haverá boas mudanças, não haverá melhorias significativas no desempenho do Ministério Público, se cada um de nós não for o obreiro dessas mudanças e dessas melhorias.
Por último, não poderia deixar de agradecer a presença de todos.
No entanto, gostaria de pensar que não estão por mim mas por uma causa.
Muito obrigado.

Palácio de Palmela, 20 de Outubro de 2008

*Quando iniciei funções, por uma segunda vez, como Inspetor do Ministério Público.