sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Ar de escuta

Do DIÁRIO, de Mário Sacramento, em Dezembro, 5 (1967) -
 
Lá estive outra vez em Lisboa. A mesma sedução e a mesma repulsa. As oportunidades e o desamparo, com aqueles fins de tarde tão luminosos e melancólicos a um tempo, como o Cesário o viu.
Fui de carro com o Costa e Melo e Esposa. Passámos depois nos sítios por onde andei «ao dilúvio», mas já mal se apercebe a extensão do flagelo. Não consegui localizar o sítio onde abandonámos o carro. E verifiquei que não chegámos a atingir a auto-estrada, afinal: de noite - e noite como aquela, sobretudo, o engano é fácil para quem não está familiarizado com o ambiente.
Diz-se que os Serviços Meteorológicos previram o cataclismo, mas os poderes não deixaram dar a notícia... para não suscitar alarmes. Houve também telefonemas para a Emissora, a informar de cortes de pontes, que não foram tomados em consideração e originaram mortes, entre elas a de um médico. Enfim, a sagrada paz portuguesa: morre calado e contente!
O gerente da Arcádia, Dias de Carvalho, não só perdeu o automóvel, mas todo o recheio da casa. Ainda por cima, ficou com a família colateral a seu cargo, por morte dum irmão ou irmã, já não sei. Anda tão desorientado, que não voltou a pôr os pés na casa onde trabalha. Naquela zona ribeirinha da cidade - Largo de S. Paulo, etc. - as casas foram totalmente saqueadas pelas águas. Houve ourives, p. ex., a quem a corrente da inundação levou todas as jóias.
Depois de gatafunhar os livros, almocei com o Namora, em casa dele. À tarde, encontrei o Armindo Rodrigues e o Manuel Mendes no Chiado, como é hábito. O último com um aspecto e uma fadiga física que me impressionaram: perdeu, nos últimos meses, oito quilos, anda com uma diarreia há meses, já foi radiografado e o Cascão de Anciães atribui a malaise a uma virose das que os expedicionários têm trazido de África. Será mentira piedosa? Não tem onde cair morto, coitado, se tiver de largar a pena! Embora com manifesto esforço, continua pétillant de espírito, contando as mil histórias, em catadupa, que só ele conhece. Falou-me com saudade do Caraça: todos os dias pensa nele, inquirindo o que opinaria sobre isto sobre aquilo, se fosse vivo. Lá andámos os três, de livraria em livraria, como outros vão de taberna em taberna.! Sempre a olhar quem se encosta à estante mais próxima, com ar de escuta!
A despeito da presença do Embaixador da França, e do Forjaz Trigueiros, entre outros, a PIDE proibiu um jantar, que seria seguido de colóquio, do Claude Roy com umas três dezenas de intelectuais. O Trigueiros telefonou ao ministro dos Negócios Estrangeiros, que achou «impossível» e prometeu intervir, mas o facto é que a Srª D. PIDE só condescendeu em que seis deles (nem mais um!) fossem jantar para outro lado e... sem colóquio... Comeram pato mudo, provavelmente!
No regresso para cá, três viúvas menopausadas, à minha frente, no «foguete», contando e recontando as suas amarguras. Todas de saias muito curtas, mas todas em luta com elas para esconderem os joelhos! Trariam contrabando?! O certo é que me senti tão viúvo como elas, mas das ilusões, que são o sal da terra!