"Ora, se palavras neutras são culpa, que fariam as positivas, e as queixas formais, et quis est Deus qui eos eriperet das mãos dos senhores inquisidores, que logo gritam ao povo que é uma causa da santa fé? O gemer e o suspirar, que a natureza reservou por arma privilegiada ao oprimido, é interdito àquele povo. Palavras que nem sequer provam queixa, mas que apenas dão lugar a essa presunção, e esta talvez duvidosa, castigam-se num palco público severamente, condena-se aquela desafortunada ao cárcere, à infâmia perpétua e ao desterro; com ignomínia eterna de uma família. Aquela pobre mulher terá dito em conversa familiar quaisquer palavras que terão feito presumir que a sua confissão de 1662 era falsa e extorquida por medo da morte, por causa dos horrores da prisão e dos cruéis tormentos; ou que terá lamentado a sua má fortuna de ser acusada injustamente e de ter caído nas mãos de um tribunal tão rigoroso, ainda que as palavras não tenham este sentido, e se pudessem entender de outro modo. Aquele fogo também reprime as lágrimas e afoga os gemidos, e concentra o incêndio no coração. Que mais falta a isto, que ninguém ousa dizer e todos entendem?"
Padre António Vieira, Escritos sobre os Judeus e a Inquisição