sábado, 20 de dezembro de 2014

Leituras



Desejo desde já informar os meus leitores que neste lugar a palavra Barredo significa a cintura de casebres que se estende à beira rio desde os arcos de Miragaia ao Monte do Seminário. É o esgoto da cidade.
Eu tinha ido na companhia de um rapaz do Lar do Porto, de folga naquele dia. Batemos de mansinho e entrámos numa porta que diz para a rua; é uma loja. O rapaz tapou o nariz e daí a um minuto já não estava ao pé de mim: «Não posso mais». E saiu imediatamente para a rua. Por este pequenino e terrível episódio pode cada um julgar da nossa desumanidade!
Eu deixei-me ficar. Ando afeito. Estou salgado. Tenho visto muito pior. Por isso mesmo tudo quanto se diz de civilização e progresso, aborrece e faz-me virar a cara.
Ela estava deitada numa enxerga. Quer-se levantar, mas não pode. É a tosse... Duma alcova interior surge o marido. É trabalhador do rio; nem sempre trabalha; a água tem marés. Três filhos daquele casal andam por lá. Não admira. O rapaz que veio comigo não pode estar um minuto dentro daquela casa. Nós somos tão desumanos! Somos tão cruéis! Nós não amamos o nosso semelhante e dizemos que sim à boca cheia!
A volta prossegue. O dia era para a romaria. Mias um casebre; era uma «ilha». O mesmo clima. As mesmas vistas. Igual vida. Em uma casa estava deitado na cama um rapaz de dezassete. Daí a nada entra a mãe e informa que os outros filhos tinham ido à Carvalhosa e este, por não ter forças, ficou deitado na cama. Em outros sítios tinha ouvido dizer Cedofeita. Agora oiço Carvalhosa e venho a saber que se trata da mesma coisa: é um Dispensário aonde multidões vão ao engano. Eles estão de pé para que se não diga que nós não fazemos caso dos doentes pulmonares, mas toda a gente sabe que não havendo casa nem pão, os remédios perdem a força de curar; e os que vão ao Dispensário não têm casa nem pão. Nós todos sabemos isto, para maior culpa, para maior castigo.
Padre Américo, O Barredo - Lugar de Mártires, de Heróis, de Santos (pags, 47/48)