terça-feira, 11 de junho de 2013

Leituras


Filho. Já não gosto destas fogueiras. Para que é que os deuses precisam delas? É verdade que dantes queimavam sempre alguém?
Pai. Eles não abusavam. Queimavam coxos, mandriões e insensatos. Queimavam quem não servia. Quem roubava nos campos. De qualquer modo, basta para contentar os deuses. Bem ou mal, chovia.
Filho. Não compreendo que gosto tinham nisso os deuses. Se chovia na mesma. Até Átamas. Apagaram a fogueira.
Pai. Vê bem, os deuses são os senhores. São como os patrões. Queres que vissem queimar um deles? Entre si ajudam-se uns aos outros. Em contrapartida a nós ninguém nos ajuda. Que faça chuva ou bom tempo, o que importa aos deuses? Agora acendem-se as fogueiras, e diz-se que faz chover. O que lhes importa, aos patrões? Alguma vez os viste virem ao campo?
Filho. Eu não.
Pai. Vês? Se dantes bastava uma fogueira para fazer chover, e queimar nela um vagabundo para salvar a colheita, quantas casas de patrões é preciso incendiar, quantos matar pelas ruas e pelas praças, antes que o mundo se torne justo e entre nós se tenha uma palavra a dizer?
Filho. E os deuses?
Pai. O que têm os deuses?
Filho. Não disseste que os deuses e os patrões andam de mãos dadas? São eles os patrões.
Pai. Vamos degolar um cabrito. O que fazer? Mataremos os vagabundos e quem nos rouba. Faremos uma fogueira.
Filho. Quem me dera que fosse já amanhã. A mim os deuses fazem-me medo.
Pai. E fazes bem. Os deuses, devemos tê-los do nosso lado. Na tua idade é mau não se preocupar com isso.
Filho. Eu nem quero pensar nisso. São injustos, os deuses. Que necessidade têm eles de que se queime gente viva?
Pai. Se assim não fosse, não seriam deuses. Quem não trabalha, como queres que passe o tempo? Quando não havia patrões e se vivia com justiça, era preciso matar alguém de vez em quando para lhes dar prazer. Eles são assim. Mas nos nossos tempos já não precisam disso. Somos tantos a viver mal que lhes basta olhar para nós.

(pags. 82/83)