Filho. Já não gosto destas fogueiras. Para que é que os deuses
precisam delas? É verdade que dantes queimavam sempre alguém?
Pai.
Eles não abusavam. Queimavam coxos, mandriões e insensatos. Queimavam quem não
servia. Quem roubava nos campos. De qualquer modo, basta para contentar os
deuses. Bem ou mal, chovia.
Filho. Não compreendo que gosto tinham nisso os deuses. Se chovia na
mesma. Até Átamas. Apagaram a fogueira.
Pai.
Vê bem, os deuses são os senhores. São como os patrões. Queres que vissem
queimar um deles? Entre si ajudam-se uns aos outros. Em contrapartida a nós ninguém
nos ajuda. Que faça chuva ou bom tempo, o que importa aos deuses? Agora
acendem-se as fogueiras, e diz-se que faz chover. O que lhes importa, aos
patrões? Alguma vez os viste virem ao campo?
Filho. Eu não.
Pai.
Vês? Se dantes bastava uma fogueira para fazer chover, e queimar nela um
vagabundo para salvar a colheita, quantas casas de patrões é preciso incendiar,
quantos matar pelas ruas e pelas praças, antes que o mundo se torne justo e
entre nós se tenha uma palavra a dizer?
Filho. E os deuses?
Pai.
O que têm os deuses?
Filho. Não disseste que os deuses e os patrões andam de mãos dadas?
São eles os patrões.
Pai.
Vamos degolar um cabrito. O que fazer? Mataremos os vagabundos e quem nos
rouba. Faremos uma fogueira.
Filho. Quem me dera que fosse já amanhã. A mim os deuses fazem-me
medo.
Pai.
E fazes bem. Os deuses, devemos tê-los do nosso lado. Na tua idade é mau não se
preocupar com isso.
Filho. Eu nem quero pensar nisso. São injustos, os deuses. Que
necessidade têm eles de que se queime gente viva?
Pai. Se
assim não fosse, não seriam deuses. Quem não trabalha, como queres que passe o
tempo? Quando não havia patrões e se vivia com justiça, era preciso matar
alguém de vez em quando para lhes dar prazer. Eles são assim. Mas nos nossos
tempos já não precisam disso. Somos tantos a viver mal que lhes basta olhar
para nós.
(pags. 82/83)
(pags. 82/83)