A verdade policial nem sempre coincide com a verdade judicial. As razões que levam a polícia, naqueles comunicados sem regras que por aí pululam, a anunciar que descobriu o autor da autoria, não são idênticas àquelas que irão ditar a condenação, em tribunal, do alegado autor. As expectativas criadas com esses comunicados são, por isso, indutoras de avaliações incorrectas sobre o modo como funcionam os mecanismos da justiça.
O convencimento do polícia não garante o convencimento do juiz. Se assim fosse, este limitar-se-ia a certificar aquele. Mas é necessário produzir as provas e contraditá-las. Não há justiça sem argumentação, de um e do outro lado. Felizmente, as absolvições existem.
O problema da avaliação da prova bastante ou suficiente para levar alguém a julgamento é das matérias mais críticas para um magistrado. Diz a jurisprudência, que é o vade-mécum dos magistrados, que essa prova é bastante quando a condenação, em prognóstico, se afigurar mais plauzível do que a absolvição. Dizer isto é uma evidência: pelo menos, dá conforto. A dificuldade da evidência é que ela não é quantificável. Sem querer fazer ironia, poderá dizer-se que há magistrados que tem mais olho do que outros. Se se fala do olho clínico e do olho vivo, porque não falar também do olho judicial?
Numa comarca do país profundo, foram presos, num verão quente, quatro cidadãos, presumidamente tidos como autores de um violento incêndio que deflagrou na região. Antes dos magistrados saberem o que se passava, já a polícia tinha emitido um comunicado dando conta à sociedade, e à saciedade, das detenções e gerando uma convicção pública que eles, os detidos, seriam os responsáveis por uma responsabilidade que só uma outra instância poderia declarar. Naquelas condições, depois do comunicado e com a tensão social gerada pela onda de incêndios, nenhum magistrado teria ousado determinar que os detidos aguardassem os ulteriores termos do processo que não fosse em prisão preventiva.
E, assim, aconteceu.
Alguns meses depois, a polícia deu por finda a investigação. Com este tempo em prisão preventiva, qual o magistrado do Ministério Público que não se sentiria obrigado a requerer o julgamento dos detidos? E qual o juiz que não pensaria que o melhor seria aguardar pela decisão do julgamento, até porque neste seriam três cabeças a decidir?
Era já inverno quando os quatro arguidos forma julgados por três juízes e absolvidos. A ausência de prova produzida na audiência foi manifesta. Não houve comunicados. Nem da polícia nem do tribunal.
Talvez por ser inverno, a absolvição não foi notícia.
In Os Cordoeiros, 13 de Fevereiro de 2004
Recuperado pelo A.M. no seu Renascer!...