Hoje, estou sóbrio. A sobriedade é inimiga da imaginação. E, sem esta, as epístolas tornam-se penosas. É evidente que há sempre pretextos para escrever. Pormenores do que se passou ontem ou adivinhações do que não se passará amanhã.
Ontem à noite, participei numa pequena reunião em que o Felgueiras, presidente do Sindicato para o qual pago, religiosamente, as quotas, fez um balanço criterioso da situação. Gostei, talvez por que me senti mais novo. As questões sindicais são recorrentes. As variantes nos discursos traduzem apenas os equilíbrios e os desequilíbrios em que a realidade se plasma em cada momento. É um jogo interessante que exige aquela persistência de quem anuncia uma boa nova. E o Felgueiras anunciou algumas.
Amanhã será outro dia. O que sendo óbvio, poderá não ser verdadeiro. Poderá ser apenas mais um dia, sem grandeza e sem memória. A verdade é que a maioria dos dias são assim. E penso, às vezes, que gosto desse sentimento inútil de um tempo definitivamente precário.
Enquanto magistrado, nunca sonhei com grandes processos ou grandes causas. Interesso-me por um exercício minimalista da magistratura. Daquela que se afirma nos pequenos gestos do quotidiano. Daquela que quer e vê resultados imediatos da sua actuação, ainda que modestos. Sem espavento nem entrevistas. É essa cultura de adesão à sociedade em que o magistrado se insere que está a perder-se.
Sem querer cometer qualquer heresia, direi que me interessa mais o trabalho de cada um dos magistrados dispersos pelo país, nos seus isolamentos e nas suas insuficiências, do que aquilo que se discute (ou não discute) nos corredores do poder da magistratura. Temos feito pouco por eles, talvez por se ter um modo de organização que é pouco exigente consigo mesmo ou que se definiu com outras prioridades.
Afinal, escrevi sem saber o que iria escrever. A sobriedade também traz surpresas. Entre o ontem e o amanhã recordarei, mais do que não seja, esta epístola.
In Os Cordoeiros, 4 de Fevereiro de 2004
Recuperado pelo António Maria no Renascer!...