sábado, 12 de fevereiro de 2011

O paradigma

A uma justiça de pequena escala – poucos advogados, menos magistrados, alguns processos, a que se juntava uma contenção social conseguida com instrumentos que podiam ir da censura a uma moral que integrava padrões de submissão acrítica, seguiu-se, quase em crescimento exponencial, uma justiça dos grandes números. Muitos magistrados, ainda mais advogados e, sobretudo, muito povo a bater à porta dos tribunais. Se num primeiro momento, poderia parecer que a capacidade de resposta seria adequada às novas condições, cedo se verificou que esse novo mundo judiciário estava preso por arames. A mediatização dos casos e das causas democratizou o conhecimento dessa incapacidade.
Pensaram os magistrados que, com mais magistrados, os problemas seriam resolvidos. O que pensaram os funcionários foi o mesmo. Os ministros inauguraram mais casas da justiça. Os advogados puseram em causa o ensino de algumas faculdades. Até houve um congresso com propostas geradas em consenso. Nunca se gastou tanto, e tão mal, com a justiça. Na informatização e no resto.
Os códigos, parecendo outros, são os mesmos. E as práticas, essas, perpetuam-se para além de tudo o que se possa legislar. Citam-se as citações, num aparente ritual de sobrevivência. Os discursos de uma petição, de uma sentença, de uma alegação, têm o peso de muitos anos. Nem na linguagem se inovou.
Entre a justiça que hoje se faz e a justiça que era feita no século XIX pouca diferença existe: a não ser a dos números. O paradigma é o mesmo e os tiques quase iguais. Pouca diferença, e é apenas nas tecnologias usadas com incipiência, há entre um processo desse tempo e um outro do nosso tempo. A justiça, essa, corre o risco de ser a mesma.
Eu não tenho as respostas para estas inquietações. E, suspeito, se as tivesse ninguém as quereria. Nem dadas. Mas pressinto que há um modelo que se esgotou e que nós, nós todos, somos os actores de uma decadência. Precisamos de uma outra justiça. De uma justiça que terá de ser construída sobre os escombros da actual. É que o problema não é quantitativo. Não se resolve com um juiz em cada esquina, ou com um advogado em cada condomínio fechado, ou com um procurador em cada esquadra, ou com um escrivão em cada processo. Pelo contrário: quantos mais, mais os problemas.
Precisamos de um outro paradigma. Talvez de uma justiça administrada em tribunais sem tectos ou com códigos sem leis. Talvez uma justiça que tenha necessidade de um outro nome.

In Os Cordoeiros, 12 de Fevereiro de 2004

Recuperado pelo António Maria, Renascido