A escrita é também uma música. As mesmas verdades ou as mesmas mentiras, as mesmas alegrias ou as mesmas tristezas, podem ser escritas de maneiras infinitamente diversas. É esse o mistério das palavras. Não basta juntá-las: é preciso encontrar-lhes a alma.
Não se exige a um magistrado que seja um artista da palavra. Mas, no mínimo, para além da gramática, ou apesar dela, talvez seja de lhe pedir a contenção que fundamenta a justiça. Escrever tanto tornou-se uma estética. Ser redundante é um atributo. Não sendo uma exigência dos Códigos, parece um padrão para aferir da qualidade.
Quem faz das palavras o seu instrumento de trabalho, deveria estudar e aperfeiçoar a sua utilização. É o que fazem os que utilizam os números ou os que se confrontam com as notas musicais. Aprende-se a escrever. Aprende-se a fazer uma redacção (palavra belíssima, caída em desuso). Saber disciplinar as ideias é saber disciplinar as palavras.
Temos uma justiça com um discurso pouco cuidado. Por formação e por gosto. As palavras acotovelam-se na insuficiência das ideias. Ou vice-versa. A glória está no número de páginas preenchidas com palavras, ainda que seja glória que ninguém lê.
Li, algures, que ler é escrever. A lição que tenho aprendido é a de que o exercício sistemático e diversificado da leitura é uma forma eficaz de aprendizagem da escrita. Creio que a formação não tem investido nesta vertente, como se o que aprendemos a escrever até à licenciatura fosse suficiente para a escrita de uma vida.
A sobriedade no uso das palavras reflecte a ponderação no exercício dos procedimentos e das decisões. Tal como na vida, também na justiça há uma questão de bom gosto.
In Os Cordoeiros, 28 de Fevereiro de 2004
Recuperado pelo A.M. no Renascer!...