Sr. Cordoeiro-Mor
A minha mulher não sabe que eu ando metido nesta coisa dos blogues. Não sabe nem deve saber. É, por isso, que tenho de, sendo eu, parecer que o não sou.
Não será uma questão de fingimento ou de personalidade em duplicado: será mais uma questão de ilusionismo. Não é apenas no palco do circo que é preciso criar ilusões. Também no palco da vida, ainda que esta imagem, de tão gasta, já não iluda ninguém.
Sou eu que compro, para mim, os xanaxes necessários à minha sobrevivência. Mas é ela que os toma, à minha revelia. Nos primeiros tempos em que isso me aconteceu, ainda supus ser a empregada, suposição manifestamente injusta. Tirei a prova dos nove quando deixei, por intencional descuido, um quadrado de chocolate e um xanax sobre a mesa que sabia ir ser limpa naquela tarde. Só o chocolate desapareceu.
A minha mulher desconfia da justiça e de mim. Não sei se começou, primeiro, a desconfiar de mim, ou se foi da justiça. Lembro-me de que, uma vez, ficou muito escandalizada quando foi testemunha, meramente abonatória, de um colega, julgado por ter insultado a sogra. Convocada para estar no tribunal às 9h30m, danou-se quando soube que o juiz, que no caso era uma juíza, apenas chegou às 11h30m. Ainda lhe expliquei que teria sido uma situação ocasional e quase acreditou em mim. Mas foi amor que pouco durou. Passando aquele atraso a ser tema das suas queixas, logo descobriu que amigas e amigos, e até uma desconhecida encontrada num consultório médico, tinham idênticas histórias para contar.
A partir daí, tudo o que eu diga da justiça é ouvido com desdém. E, não contente, passou a ler os escritos do Professor Boaventura, trazendo-os à colação, em público, só para me humilhar.
Descobrir-me num blogue, tenho a certeza, seria a sua glória. Imagino-a a telefonar às cunhadas e aos cunhados, voz alta a ouvir-se pela casa toda: o Houdin voltou à adolescência, anda a blogar sabe-se lá com quem. O sossego desta sala, onde tenho o computador, acabaria. Talvez, até, tivesse deixar de blogar, ou, para o fazer, tivesse de recorrer, vexado, a um cybercafé.
Cord(i)almente
A. Houdin
In Os Cordoeiros, 5 de Março de 2004
Trazido à colação pelo A.M. no seu Renascer!...