"A profunda certeza de que o corpo humano está exposto às invasões diabólicas entra no Minho em capacidade de bacharéis. Vinte e oito anos depois que o minorista professava crenças em obsessos, por 1841, na freguesia de Ribas, concelho de Celorico de Basto, um moço de lavoura requeria ao juiz de paz – que era dos órfãos também - neste sentido: «Que a alma de certa pessoa se lhe metera no corpo, e o não deixava dormir, exigindo-lhe um sermão e certo número de missas; e, como ele suplicante era pobre, requeria que esta despesa fosse feita à custa da caixa dos órfãos». O juiz de paz ponderou seriamente e conscienciosamente a justiça do pedido; mas não quis assim decidir sem consultar pessoa de maiores teologias. Mandou, pois, ouvir o doutor curador dos órfãos; o qual lhe respondeu «que se ouvisse previamente o conselho de família». O conselho reunido deliberou que, visto o doutor curador não impugnar, era de parecer que se concedesse à alma a graça que requeria, e se aliviasse o rapaz do vexame. Em consequência, pregado o sermão e ditas as missas, o rapaz ficou são e escorreito. (Veja o Periódico dos Pobres no Porto, de Maio de 1842, e a Revista Universal Lisbonense do mesmo ano, p. 430). O doutor curador de Celorico provavelmente está hoje no Supremo Tribunal de Justiça a lavrar acórdãos. Semelhante magistrado, se conservar ainda no espírito as velhas crenças até certo ponto cristãs, de certo não fará justiça de mouro."
Camilo Castelo Branco, Maria Moisés